Cegos de nascença têm audição mais apurada

No mundo dos quadrinhos Marvel, o herói conhecido como Demolidor chama a atenção por ser cego. Um acidente com produtos químicos durante a infância tirou-lhe a visão e ampliou a percepção de seus outros sentidos para um patamar sobre-humano. Um estudo canadense acaba de mostrar que os superpoderes desse personagem são menos fantasiosos do que parecem: pessoas que se tornaram cegas antes dos 2 anos de idade desenvolvem melhor a audição para compensar a ausência de visão.

null

Detalhe do cartaz do filme Demolidor , sobre o herói cego que tem os outros sentidos superaguçados (foto: reprodução)

A confirmação foi feita por cientistas do Centro de Pesquisas em Neuropsicologia e Cognição da Universidade de Montreal. O estudo foi divulgado em 15 de julho na revista Nature . Pesquisas anteriores haviam concluído que cegos têm mais facilidade que pessoas que enxergam para se guiar por sons, mas ainda havia dúvidas se essa habilidade se estendia para a percepção de vozes e música.

“Mostramos que as pessoas cegas julgam melhor a direção da mudança de altura no som, mesmo quando a velocidade de variação é dez vezes maior do que a captada pelos indivíduos que enxergam”, esclarece o psicólogo Pascal Belin, autor principal do estudo. “No entanto, isso só ocorre se elas nasceram ou se tornaram cegas com menos de 2 anos de idade.”

Um experimento comparou o desempenho de dois grupos de sete indivíduos cegos: o primeiro havia perdido a visão antes dos 2 anos e o segundo, entre 5 e 45 anos. Havia ainda um grupo de controle de 12 pessoas, sem deficiência visual. Os participantes, que tinham de 21 a 46 anos de idade, deveriam ouvir, por um fone de ouvido, duas notas de diferentes freqüências e apontar qual som era mais agudo ou grave. Oito pares de tons diferentes foram usados: o nível de dificuldade aumentava à medida que diminuía a duração do tom ou do espaço entre as freqüências.

Os três grupos tiveram o desempenho piorado quando aumentava o grau de dificuldade. No entanto, os indivíduos que ficaram cegos mais cedo mostraram uma capacidade mais significativa de distinção de sons que os dois outros grupos.

Belin explica que, quanto mais jovem se adquire a cegueira, melhor a capacidade para distinguir alterações nos sons, pois o cérebro está mais suscetível a se adaptar melhor às adversidades nesse período de desenvolvimento. Segundo ele, a região do cérebro responsável pela visão — o córtex visual — pode ser usada para processar informações de outros sentidos, se tiver chance.

O pesquisador esclarece que, no nascimento, os centros de visão, audição e outros sentidos no cérebro estariam todos conectados. Em indivíduos que enxergam normalmente, essas conexões seriam gradualmente eliminadas. Já naqueles que ficaram cegos cedo, a ligação tenderia a ser preservada e usada.

Por isso, ele acredita que há um limite a partir do qual passa a ser tarde demais para que o cérebro se adapte. “Quando todos os sentidos estão intactos, o cérebro não necessita de conexões entre os centros sensoriais, pois a quantidade de informações poderia confundi-lo”, afirma Robert Zatorre, um dos autores do estudo.

Renata Moehlecke
Ciência Hoje On-line
04/08/04