A ciência deve ser aberta e visar ao bem comum. Esta pode parecer uma afirmação óbvia para muitos, mas a realidade não é bem assim. Nos últimos séculos, o desenvolvimento do conhecimento científico se baseou em larga escala no acesso aberto, mas as últimas décadas têm presenciado um avanço sem precedentes do interesse privado e comercial sobre a pesquisa, em todos os níveis. Não por acaso, ganha força um novo movimento em prol, justamente, da defesa e da renovação da ciência aberta por meio da tecnologia, da colaboração em rede e de alternativas mais flexíveis para proteção da propriedade intelectual.
De forma geral, o movimento da ciência aberta (open science) visa estimular a cooperação entre cientistas (especialmente on-line), a autonomia em relação a agendas comerciais, o desinteresse por ganhos pessoais com os resultados, o acesso livre a dados e métodos e a aproximação entre o cidadão comum e a produção científica.
Durante encontro internacional sobre o tema realizado no final de agosto no Rio de Janeiro, Paul David, professor emérito de economia das universidades de Stanford (Estados Unidos) e Oxford (Inglaterra) e convidado de honra do evento, destacou que o equilíbrio historicamente construído entre a ciência aberta e a atividade privada de pesquisa e desenvolvimento está ameaçado.
“Em geral, a ciência aberta produz conhecimento confiável, mas não traz resultados imediatos, enquanto a pesquisa privada explora o saber existente de forma mais responsiva”, analisou. “São sistemas complementares que precisam estar equilibrados, um desafio em nossa economia moderna, já que a ciência aberta não visa ao lucro e isso diminui sua capacidade de resistir à acirrada competição por novos recursos.”
Privatização e concentração
Uma das questões mais abordadas pelos participantes do encontro foi a ‘privatização’ da produção do conhecimento, com a adoção de medidas restritivas para proteção da propriedade intelectual e a cobrança de altas taxas para o acesso ao conhecimento.
“A ciência aberta está pressionada pela erosão do domínio público da informação, mas quais serão as consequências disso para a sustentabilidade do avanço científico no longo prazo, no ritmo que vimos no século passado?”, avaliou David. O pesquisador criticou tentativas de combinar os dois regimes, aberto e privado, na mesma instituição. “Isso não é possível: se a universidade passa a explorar a propriedade intelectual, entra em conflito com seu papel enquanto lugar da pesquisa independente e de disseminação de conhecimento confiável”, disse.
A própria dinâmica de pesquisa e ensino nas universidades foi problematizada por Henrique Parra, coordenador do Pimentalab – Laboratório de Tecnologia, Política e Conhecimento da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Ele enfatizou o grande descompasso muitas vezes existente entre as práticas acadêmico-científicas e as tendências fora dessas instituições. “Enquanto crescem dinâmicas de produção colaborativa, na universidade isso não ocorre, nem mesmo se compartilha o fichamento de um texto com um colega”, apontou. “Em muitas universidades, essa discussão sequer está presente; o que existe é uma espécie de monstro estranho que mescla capitalismo acadêmico altamente competitivo com um feudalismo de informação.”
O enorme desequilíbrio na produção científica mundial indexada, concentrada nos Estados Unidos e na Europa, também foi um ponto levantado pelos pesquisadores. Leslie Chan, professor da Universidade de Toronto Scarborough (Canadá) e diretor da Bioline International, plataforma colaborativa que reúne veículos de acesso livre publicados em países em desenvolvimento, acredita que investir na pesquisa local pode dar poder aos cidadãos e gerar até uma maior participação nos processos políticos.
“Devemos pensar criticamente o que significa fazer ciência, procurar um modelo mais razoável; hoje essa produção está concentrada em poucos países, o que não significa que não exista conhecimento fora dali, ele simplesmente não é valorizado”, avaliou Chan. “A internet, nesse sentido, mudou a forma de fazer e comunicar ciência, estimulou o surgimento de uma ciência mais conectada para resolução de problemas locais e não apenas dos grandes centros produtores da big science.”
Tecnologia e possibilidades
De fato, tecnologias como ferramentas on-line e colaborativas, softwares e hardwares livres sempre parecem ligadas ao debate atual sobre a ciência aberta. Os caminhos dessa nova prática passam pela criação de mecanismos que assegurem o acesso à informação (como a exigência da divulgação aberta de estudos custeados com dinheiro público), mas também pela organização da comunidade científica articulada em torno de jornais e repositórios de acesso livre, sob novas formas de licenciamento.
Para Alessandro Delfanti, pesquisador da Universidade McGill (Canadá) e autor do livro Biohackers: The Politics of Open Science, trata-se muito mais do que uma mudança tecnológica: a tecnologia é a condição, mas o movimento é fruto da situação política, econômica e social, que pode levar a uma remodelação da ciência.
“A ciência produzida e comunicada de modo a permitir a colaboração nos esforços de pesquisa, com todo tipo de dados, resultados e protocolos, e tornada acessível livremente em diferentes estágios do processo pode ajudar a superar problemas da prática científica atual”, explicou Delfanti. “Esse modelo horizontal minimiza a duplicação de esforços, melhora a eficiência, pode acelerar descobertas, estimular pesquisas transdisciplinares e promover o rigor, a reprodutibilidade dos resultados, o engajamento público e o impacto social e econômico da pesquisa.”
Nesse sentido, Parra destacou que a ciência aberta tem muito a aprender, por exemplo, com o hackativismo, “não só em possibilidades de mineração de dados e produção distribuída, mas também em práticas renovadas de transparência, ativismo político e controle social”. E completou: “O que está em jogo são modos distintos de se pensar a política de acesso à informação e seus efeitos sociais, culturais, políticos e econômicos.”
David alertou, no entanto, para certa confusão no que vem se chamando de ciência aberta. “A ciência moderna sempre foi aberta, Thomas Jefferson já falava sobre o caráter de bem público do conhecimento em 1813”, explica. “O que temos hoje é uma nova perspectiva de realização dessa ciência, sustentada fortemente pelas novas tecnologias digitais.”
Marcelo Garcia
Ciência Hoje On-line