Hospital militar de emergência montado no Kansas (EUA) para tratar as vítimas locais da pandemia de gripe espanhola (foto: National Museum of Health and Medicine, Armed Forces Institute of Pathology).
O ano de 1918 foi sombrio para a humanidade. O mundo presenciou em novembro o final da Primeira Guerra Mundial, que vitimou cerca de 9 milhões de pessoas e deixou um número quatro vezes maior de indivíduos com seqüelas. Porém, 1918 será lembrado também por um episódio ainda mais sinistro: o surgimento da gripe espanhola.
Essa doença foi causada por uma variedade extremamente agressiva do vírus da influenza tipo A conhecida como H1N1. Ela dispersou-se rapidamente pelo mundo e causou em apenas 18 meses, entre 1918 e 1920, a morte de cerca de 50 a 100 milhões de pessoas – entre 2,5 a 5% da população mundial na época.
A mortalidade associada com a gripe espanhola foi superior, por exemplo, ao total de mortes já registradas em decorrência de complicações causadas pela Aids. Segundo dados do Programa das Nações Unidas para a Aids/HIV, essa doença, que também é causada por um vírus e que tem sido foco de extremo interesse e alocação de recursos por parte da sociedade, levou à morte cerca de 25 milhões de pessoas desde a sua descoberta há 25 anos (em junho de 1981).
Os mecanismos empregados por organismos tão simples como o vírus da gripe para ludibriar o eficiente sistema imunológico humano ainda são algo que a ciência procura entender. As razões que levaram uma gripe – que normalmente causa apenas alguns incômodos passageiros – a se tornar fatal ainda são foco de discussão e de grande interesse dos pesquisadores, quase 90 anos depois da ocorrência da pandemia de gripe espanhola.
Mecanismo de ação
Um grande número de moléstias causadas por vírus aflige a humanidade há milênios (sarampo, tifo, caxumba, escarlatina, varíola, poliomielite etc.). No entanto, até pouco tempo atrás, esses patógenos eram desconhecidos. A gripe ou influenza, por exemplo, recebeu esse nome na Itália durante o século 15, pois as pessoas achavam que ela era causada pela influência de astros celestes. Somente com o desenvolvimento do microscópio eletrônico, a partir de 1930, é que foi possível identificar os primeiros vírus. Contudo, nenhuma dessas patologias teve o impacto global da gripe espanhola.
Policiais em Seattle (EUA) vestidos com máscaras para se proteger da gripe espanhola de 1918 (foto: US National Archives and Records Administration).
Idosos, jovens e adultos saudáveis foram igualmente afetados pela doença e pessoas que não apresentavam sinais da infecção podiam morrer poucas horas após serem infectadas pelo vírus. A taxa elevada de mortalidade da gripe espanhola foi favorecida pelo aumento no fluxo pessoas entre diferentes regiões em decorrência da Primeira Guerra Mundial e pela ausência de métodos científicos e de medicamentos para combater a moléstia.
A capacidade dos vírus da gripe de estocar sua informação genética em moléculas de RNA confere a eles uma maior capacidade de sofrer mutações, pois não possuem um sistema de controle de erros de replicação como os vírus de DNA. Assim, esses patógenos podem escapar ao controle imunológico do organismo hospedeiro com maior facilidade.
Normalmente essas mutações são pequenas, porém ocasionalmente ocorrem mudanças radicais nos vírus que impedem que os patógenos sejam eliminados por nosso sistema imune – nesses casos, aparecem as epidemias e pandemias como a de 1918. Como a grande maioria desses tipos de vírus, o H1N1 surgiu após mutações em aves asiáticas. Porém, de uma forma incomum, esse patógeno foi transmitido dessas aves diretamente para moradores da região, sem infectar antes outros mamíferos, como porcos, por exemplo. Curiosamente, apesar de ela ter surgido na Ásia, a pandemia foi chamada de “gripe espanhola” devido à grande propagação inicial que a moléstia teve naquele país.
Em busca do vírus
Cientistas interessados em estudar os mecanismos empregados pela cepa H1N1 têm se aventurado por locais estranhos, como cemitérios de regiões geladas como o Alasca, para obterem exemplares preservados desse vírus em amostras de tecidos de vítimas da gripe espanhola. Devido à extrema virulência dessa linhagem viral, a iniciativa suscitou temor de que ocorresse uma liberação acidental do vírus no ambiente.
Imagens de microscopia eletrônica de partículas do vírus da
gripe espanhola de 1918 (foto: CDC/Terrence Tumpey/ Cynthia Goldsmith).
Apesar desse temor, uma pesquisa realizada por uma equipe da Agência Canadense de Saúde Publica, liderada por Darwyn Kobasa e publicada na edição de 18 de janeiro da revista Nature
, demonstra que o vírus da gripe espanhola causava uma forte reação auto-imune que levava rapidamente à falência pulmonar do organismo hospedeiro. Em seu estudo, a equipe de Kobasa infectou macacos com amostras de vírus obtidas a partir de tecidos congelados de vítimas da gripe espanhola de 1918. Sinais clínicos da infecção viral foram observados 24 horas após a inoculação e os animais tiveram que ser sacrificados antecipadamente no oitavo dia do experimento.
Uma resposta imune exacerbada do hospedeiro acometido com o vírus H1N1, conhecida como tempestade de citocinas, está associada com a alta taxa de mortalidade da gripe espanhola.
As citocinas são moléculas de sinalização produzidas por tipos celulares presentes em locais de infecção e por células de defesa como linfócitos T e macrófagos. As citocinas coordenam a reação imune do organismo e sua produção é regulada de forma precisa. Porém, nas ocasiões em que o sistema imune tem de enfrentar bactérias e vírus muitos patogênicos como o H1N1, o organismo pode perder a capacidade de regular a liberação das citocinas. Conseqüentemente, a ação das células de defesa pode ficar descontrolada e elas podem começar a agir de forma indiscriminada, destruindo tecidos do próprio organismo.
O termo “tempestade de citocinas” foi cunhado em 1993 por Ferrara e colaboradores. Esse fenômeno pode ocorrer em respostas imunes contra enxertos, septicemia e varíola. Acredita-se que, no caso da gripe espanhola, um dos alvos dessas células imunes sejam os pulmões: devido à inflamação, eles se enchem de líquido e a respiração é bloqueada, levando à morte. Pessoas acometidas pela gripe espanhola apresentavam uma obstrução severa nos pulmões após algumas horas e, em estágios mais avançados, uma hemorragia pulmonar associada com pneumonia.
Controle de linhagens
Partículas de vírus da gripe aviária (H5N1) cultivadas em células renais de cachorro (foto: CDC).
Para se evitar o surgimento de novos episódios como o da pandemia gripe de 1918, a Organização Mundial de Saúde faz um controle de novas linhagens que surgem a cada ano nas diferentes regiões do mundo. Novas vacinas são então produzidas para essas linhagens. No entanto, devido à elevada taxa de mutações desses vírus, sua utilização resume-se a apenas uma ou poucas cepas.
Apesar dessa vigilância sem trégua, somos expostos constantemente a novas variedades de influenza como a gripe aviária – que levou à eliminação de milhões de aves em diversos países e à morte de 150 pessoas – e a novas viroses emergentes como o ébola, a rotavirose, a hantavirose e a dengue. Muitas delas são contraídas quando perturbamos e devastamos ambientes como as florestas tropicais e têm a sua disseminação facilitada pelo comércio global, pela facilidade de viajar para locais distantes e pela superpopulação mundial.
Infelizmente, apesar da vigília constante e do desenvolvimento tecnológico, se uma nova virose com a mesma letalidade da gripe espanhola surgir em nosso planeta atualmente, dificilmente teremos a capacidade de evitar que outros milhões de pessoas pereçam como no funesto ano de 1918.
Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line
26/01/2007
SUGESTÕES PARA LEITURA
Kobasa, D. et al (2007). Aberrant innate immune response in lethal infection of macaques with the 1918 influenza virus. Nature , 445: 319-23.
Ferrara J.L., Abhyankar S., Gilliland D.G.(1993). Cytokine storm of graft-versus-host disease: a critical effector role for interleukin-1. Transplant Proc. 25:1216-7.
Jin X.W., Mossad S.B. (2005). Avian influenza: an emerging pandemic threat. Cleve Clin J Med. 72:1129-34.
Hsieh Y.C. et al. (2006). Influenza pandemics: past, present and future. J Formos Med Assoc. 105:1-6.
Taubenberger J.K. et al. (2001). Integrating historical, clinical and molecular genetic data in order to explain the origin and virulence of the 1918 Spanish influenza virus. Philos Trans R Soc Lond B Biol Sci . 1416:1829-39.