A arca de Noé

Parto de Noé, clone de gauro nascido em janeiro de 2001. O filhote morreu 48 horas depois (foto: Wikimedia Commons).

O nascimento de Noé foi muito esperado e sua morte, 48 horas após o parto, foi amplamente noticiada. Mesmo assim, esse acontecimento alimentou de esperanças as pessoas interessadas na preservação de espécies ameaçadas de extinção.

Noé era um gauro (Bos gaurus), um primo selvagem do gado doméstico que vive nas regiões montanhosas do sul e sudeste da Ásia em manadas de cerca de 40 indivíduos. Alguns desses animais são domesticados e utilizados em fazendas há milhares de anos. Os gauros são os maiores bovinos conhecidos, superando em tamanho e peso os búfalos e bisões. A caça e a destruição de seu hábitat reduziram as populações desses tímidos animais que, por isso, passaram a figurar na lista de espécies ameaçadas de extinção – atualmente, estima-se que existam apenas 30 mil gauros na natureza.

Devido a essas ameaças, o gauro passou a figurar como um possível candidato de iniciativas de preservação. Um dos empreendimentos mais inovadores nessa área foi a clonagem de gauros empreendida pela empresa californiana de biotecnologia Advanced Cell Technologies (ACT). O método proposto utilizaria vacas como “mães de aluguel”, devido à capacidade dos gauros de produzir naturalmente híbridos férteis quando cruzados com o gado doméstico.

A clonagem de animais pode ser feita a partir de células de um embrião durante os primeiros dias de seu desenvolvimento ou pela substituição do núcleo de um óvulo por outro proveniente de uma célula de um indivíduo adulto – este último procedimento é conhecido como transferência nuclear somática.

A primeira forma de clonagem produz indivíduos geneticamente idênticos (denominados clones), porém diferentes de seus pais. É algo semelhante ao que ocorre quando são gerados gêmeos univitelinos, originados a partir de um mesmo óvulo e de um mesmo espermatozóide. Esse tipo de procedimento, inclusive, já foi realizado em 1993 em embriões humanos por Jerry Hall e Robert Stillman, pesquisadores da Universidade George Washington (EUA).

Transferência nuclear somática
A transferência nuclear somática, por sua vez, assemelha-se a um processo de reprodução assexuada, pois gera indivíduos geneticamente similares a um outro previamente existente. Esse experimento foi proposto teoricamente em 1938 pelo biólogo alemão por Hans Spemann (1869-1941), ganhador do Nobel de Medicina de 1935 por suas contribuições para o estudo da embriologia.

O primeiro experimento a empregar a transferência nuclear somática foi realizado em 1952 por Robert Briggs e Thomas King, do Instituto Carnegie (EUA), que obtiveram clones de rãs pela substituição de núcleos celulares. Essa tecnologia tem sido empregada com diversos animais desde então, mas certamente ficou mais conhecida do público após os experimentos publicados em 1996 pela equipe de Ian Wilmut, do Instituto Roslin, na Escócia, que clonou a famosa ovelha Dolly.

Macacos resos fotografados na Índia. Clones dessa espécie foram obtidos em 2000 por uma técnica que consiste em dividir um embrião com oito células e implantá-las em “barrigas de aluguel” (foto: Wikimedia Commons).

Depois de Dolly houve outros êxitos nessa área, como a obtenção de macacos resos nos Estados Unidos e a clonagem da vaca Marguerite, levada a cabo por pesquisadores franceses – o clone morreu alguns dias após o nascimento. Esses casos, no entanto, tiveram menos repercussão que o da ovelha escocesa.

A clonagem de macacos resos foi realizada por pesquisadores do Centro Regional de Pesquisas com Primatas do Oregon liderados por Gerald Schatten. A equipe empregou um método diferente do utilizado com a ovelha Dolly: embriões no estágio de oito células foram subdivididos e implantados em “barrigas de aluguel” para que pudessem completar seu desenvolvimento. A primeira clonagem utilizando essa técnica foi relatada na revista Science no início de 2000 e deu origem a um macaquinho de nome Tetra. Posteriormente, foram gerados mais de vinte indivíduos por esse método, apesar de sua pouca eficácia.

A clonagem utilizando a transferência de núcleos somáticos é teoricamente simples. Na prática, porém, trata-se de um procedimento delicado e de resultados insatisfatórios. A utilização de células adultas oferece, contudo, algumas vantagens em relação ao emprego de células embrionárias. Os clones obtidos a partir de células embrionárias produzem somente de 8 a 16 células capazes de gerar embriões; quando se usam células adultas, essa limitação deixa de existir. Além disso, conhece-se exatamente o resultado do processo de clonagem, pois o embrião clonado é uma cópia geneticamente idêntica de um individuo adulto.

Clonagem de bovinos
Na clonagem de Noé foram empregados núcleos de células provenientes da pele de um gauro. Núcleos dessas células foram isolados e inseridos no óvulo de uma vaca que havia sido anteriormente anucleado. Choques elétricos fizeram com que as duas células se fusionassem. Em seguida, o óvulo passou por uma série de mitoses sucessivas em um meio de cultura. Após essa etapa, esse grupo de células foi inserido manualmente no útero de uma vaca e, após uma gestação de nove meses, nasceu Noé.

Para realizar essa clonagem, os cientistas geraram 692 embriões. Destes, foram selecionados 24 para serem implantados em vacas e apenas oito “mães de aluguel” conseguiram manter suas gestações por mais de 40 semanas. O parto de Noé foi o único bem sucedido. Contudo, 48 horas após seu nascimento, o pequeno clone morreu devido a uma disenteria bacteriana. Segundo os pesquisadores que clonaram Noé, sua morte não teve relação com o modo como ele foi gerado.

Casal de bantengues fotografados em cativeiro. Um clone dessa espécie foi obtido por pesquisadores da ACT, mesma empresa que clonou Noé (foto: Wikimedia Commons).

Dois anos depois da tentativa de clonagem do gauro, a ACT anunciou o nascimento de mais um clone de animal selvagem. Desta vez, a espécie escolhida foi outra prima selvagem do gado, conhecida como bantengue (Bos javanicus).

Nesse experimento, que resultou no nascimento de dois animais clonados (um deles sacrificado por apresentar malformações decorrentes de defeitos na formação da placenta), foram utilizadas células congeladas de um bantengue macho morto em 1980 no zoológico de San Diego (EUA). O animal sobrevivente atualmente pode ser visitado nesse mesmo zoológico.

Dificuldades metodológicas
Como ocorreu no caso de Noé, a clonagem do bantengue exigiu um grande número de tentativas para alcançar o sucesso. De um total de 30 vacas que receberam os óvulos fusionados com células de bantengue, 16 entraram em gestação (53%), mas apenas duas levaram o processo a termo (6,6%); destas, apenas uma teve uma cria sadia. Apesar disso, os números são mais animadores que os do experimento com o gauro e da clonagem de Dolly.

Outras espécies ameaçadas foram clonadas em seguida – caso do muflão (carneiro selvagem europeu da espécie Ovis musimon), clonado por pesquisadores italianos em 2001. Contudo, a morte prematura de Dolly por envelhecimento precoce e os resultados negativos obtidos por vários grupos de pesquisa nos fazem questionar se esse é o melhor caminho para preservarmos animais ameaçados de extinção.

A clonagem a partir de células adultas pode ser uma boa alternativa para espécies altamente ameaçadas cuja capacidade de produção de gametas tenha diminuído devido à consangüinidade ou em função de outros fatores relacionados com a reprodução de populações com número reduzido de indivíduos.

Esse tipo de clonagem também pode ser útil para outras espécies ameaçadas de extinção que, naturalmente, tenham uma taxa de reprodução baixa na natureza em cativeiro, como pandas gigantes e gorilas, por exemplo. Contudo, o sucesso desses experimentos se explica também pelo fato de gauros, bantengues e o gado produzirem híbridos naturalmente e pelo fato de possuírem um período de gestação similar. Essas condições não se aplicam à maioria das espécies ameaçadas.

As clonagens de Noé e dos bantengues suscitaram debates acalorados. Pessoas opostas a esses experimentos alegam razões éticas contrárias à sua realização, enquanto os defensores de novas tentativas consideram que essa seria uma forma de se impedir a extinção de espécies ameaçadas.

Ameaça à diversidade genética
Dentro de certos limites, qualquer tentativa é aceitável para se impedir a perda de uma espécie viva. Porém, deve ser lembrado que essa clonagem produz indivíduos com o mesmo patrimônio genético do doador da célula da qual foi retirado o núcleo. Portanto, não se soluciona o principal problema de uma espécie ameaçada de extinção, que é a erosão de seu patrimônio genético causada pelo número reduzido de indivíduos na população.

O mico-leão-dourado, endêmico da mata atlântica, é um símbolo da fauna brasileira ameaçada de extinção. Ações de conservação de espécies ameaçadas talvez sejam mais eficazes que a clonagem para evitar sua perda  (foto: Wikimedia Commons).

Sob o ponto de vista da diversidade genética, a clonagem desses animais seria eficaz apenas se os novos indivíduos fossem transferidos para locais onde existam populações selvagens com um número muito limitado de indivíduos. Nesses casos, seria possível aumentar o patrimônio genético das espécies e enriquecer a diversidade genética das populações ameaçadas.

Um outro questionamento possível é o seguinte: o dinheiro investido nesse experimento não seria mais útil para ajudar a salvar esses animais da extinção se fosse empregado em medidas como a implementação e o aparelhamento de reservas para a proteção dos gauros e bantengues?

Outras medidas também podem ser adotadas para se combater a extinção das espécies ameaçadas, como o congelamento de sêmen ou a criação de bancos de células e de sementes dessas espécies. Deve se lembrar, porém, que essas iniciativas correm o risco de se limitar às espécies maiores e aos vertebrados. Organismos como insetos, bactérias e fungos – essenciais para o bem-estar do meio-ambiente – não costumam ser alvo desses esforços de conservação. A perda desses organismos, assim como a de espécies cuja presença não foi notada antes de sua extinção, pode inviabilizar os esforços futuros de reintrodução dos organismos protegidos.

Experimentos de clonagem de espécies ameaçadas devem ser implementados como uma possibilidade futura para a preservação de espécies ameaçadas. Dessa forma, talvez no futuro Noé seja – como o personagem bíblico – responsável pela salvação das espécies vivas de nosso planeta.

Contudo, talvez a melhor alternativa atual para atenuarmos o ritmo dessas extinções seria intensificarmos os esforços de conservação dos remanescentes dos ecossistemas terrestres e desenvolvermos iniciativas destinadas a conhecer a biologia das diversas espécies presentes nesses locais.

Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line 
21/03/2008

SUGESTÕES PARA LEITURA
Mastromonaco, G.F. e King,W.A. (2007). Cloning in companion animal, non-domestic and endangered species: can the technology become a practical reality? Reprod. Fertil. Dev. 19, 748-761.
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