A bomba atômica e o nascimento dos neurônios

As bombas atômicas lançadas sobre o Japão em 1945 abriram as portas para uma série de testes nucleares feitos entre 1955 e 1963 no âmbito da Guerra Fria. Meio século depois, essas explosões ajudaram a elucidar um mistério da neurociência (foto: National Archives and Records Administration). 

A bomba é o produto quintessente de um laboratório falido. A bomba envenena as crianças antes que comecem a nascer. A bomba é um cisco no olho da vida, e não sai. A bomba pondera com olho neocrítico o Prêmio Nobel.

Quando Carlos Drummond de Andrade escreveu estas frases do seu poema A bomba , publicado em 1962, mal podia imaginar que os efeitos dessa terrível arma de destruição em massa algum dia seriam usados para o bem da humanidade. Mas foi o que aconteceu quando uma equipe multinacional de pesquisadores, liderada pelo sueco Jonas Frisén, inventou uma maneira de utilizar a radioatividade atmosférica produzida pelos testes nucleares durante a Guerra Fria para resolver uma controvérsia científica da maior importância.

Existe ou não a produção de novos neurônios no córtex cerebral dos seres humanos? O córtex, como se sabe, é a região mais complexa do cérebro, aquela que nos permite falar, pensar, lembrar, chorar, amar e mais um extenso repertório de verbos desse calibre. A questão que surge é a seguinte: os neurônios que temos em nosso córtex cerebral são os mesmos que tínhamos quando nascemos? Ou durante a vida ocorre produção neuronal capaz de renovar o time? A questão faz sentido, porque se demonstrou em diferentes espécies que várias regiões cerebrais, inclusive um tipo de córtex evolutivamente mais antigo, apresentam neurogênese adulta, isto é, produção de neurônios novos após o nascimento.

Diferentes grupos de pesquisadores saíram em campo para analisar se esse é o caso do córtex. Mas o resultado gerou uma grande confusão: alguns trabalhos concluíram que sim, outros que não. Qual seria então a resposta correta? Foi aí que Frisén e seus colegas entraram em cena, e parece que colocaram um ponto final na questão.

Carbono-14

Os átomos de carbono radioativo ( 14 C) se incorporam ao DNA dos novos neurônios quando estes nascem, proporcionalmente à sua concentração na atmosfera. Modificado de Au e Fishell (2006) Nature Neuroscience , vol. 9, pp. 1086-1088. 

Os experimentos que realizaram foram muito engenhosos. Os mais velhos se lembram da Guerra Fria, quando alguns países do campo americano, e outros do campo soviético, disputavam o poder mundial realizando testes nucleares sobre a superfície terrestre, iniciados em meados da década de 1950. Ainda que localizadas em regiões desérticas distantes, as explosões atômicas produziam radioatividade que atingia a atmosfera e se espalhava por todo o planeta.

Essa radioatividade era particularmente perigosa na forma de um isótopo do carbono – o carbono-14 – que se inseria na molécula de gás carbônico, passando rapidamente às plantas pela fotossíntese, e em seguida aos animais pela alimentação. O esforço pela paz resultou no banimento das explosões na superfície terrestre em 1963, e os níveis atmosféricos de 14 C declinaram lentamente nos anos seguintes.

Frisén e seu grupo raciocinaram que, se novos neurônios corticais estivessem sendo produzidos, seu (novo) DNA conteria átomos de carbono radioativo, na proporção dos níveis atmosféricos. E isso poderia ser medido experimentalmente, se fosse possível examinar os cérebros de pessoas recém-falecidas cujo nascimento tivesse ocorrido a partir dos anos 1950.

A pá de cal na controvérsia
Fragmentos dos cérebros foram então levados a um aparelho separador de células, capaz de distinguir entre neurônios e “não-neurônios”. A medida da radioatividade de uns e outros permitiu estimar a sua data de nascimento, em relação aos níveis de radioatividade atmosférica e ao ano de nascimento de cada indivíduo.

Constatou-se que os neurônios nasciam sempre próximos ao nascimento do seu portador, enquanto as demais células se distribuíam por um período posterior de alguns anos, indicando que haviam nascido depois. Como os experimentos foram quantitativos, foi possível estimar um limite teórico máximo de 1% na proporção de neurônios gerados em um período de 50 anos, o que significaria a adição de um neurônio novo a cada coluna de 100 neurônios no córtex. Um acréscimo insignificante para 50 anos de vida!

As cores mais claras representam os lobos do córtex cerebral, e os tons mais fortes mostram as regiões analisadas, correspondentes às cores dos símbolos do gráfico. Este ilustra o caso de um indivíduo nascido em 1968 (linha vertical), época em que os níveis atmosféricos de 14 C ainda eram altos. O nível de radioatividade dos neurônios permitiu estimar a época de nascimento dos neurônios (triângulos) e células não-neuronais (círculos). Modificado de Bhardwaj e colaboradores (2006) Proceedings of the National Academy of Sciences , vol. 103, pp.  12564-12568  . 

 

A inexistência de produção de novos neurônios no córtex cerebral humano adulto, apurada por técnica tão precisa, representou uma pá de cal na controvérsia que agitou os meios neurocientíficos nos últimos dez anos, mas também um banho de água fria nas expectativas de poder estimular uma neurogênese “terapêutica” em pessoas vitimadas por traumatismos cerebrais ou doenças neurodegenerativas.

 

Por outro lado, por que será que a evolução nos retirou uma capacidade plástica como essa, existente em vertebrados inferiores? Pensando bem, somos levados a crer que é vantajoso possuir um plantel fixo de neurônios, sobre os quais construímos nossa biografia. Afinal, parte importante do monumental arquivo de informações alojadas em nossa memória tem que ser definitiva, para que não nos esqueçamos nunca do vocabulário que aprendemos na infância, das pessoas que passaram pela nossa vida (as que amamos e as que odiamos) e da nossa própria história. SUGESTÕES PARA LEITURA
C. Drummond de Andrade (1962) A bomba, em Lição de coisas , Poesia Completa e Prosa (1973), Aguilar Editores, pp. 352-356.
K.L. Spalding e colaboradores (2005) Retrospective birthdating of cells in humans. Cell , vol. 122, pp. 133-143.
R.D. Bhardwaj e colaboradores (2006) Neocortical neurogenesis in humans is restricted to development. Proceedings of the National Academy of Sciences , vol. 103, pp.  12564-12568  .
E. Au e G. Fishell (2006) Adult cortical neurogenesis: nuanced, negligible or nonexistent? Nature Neuroscience , vol. 9, pp. 1086-1088.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
24/11/2006