Escrevo esta coluna no dia 1º de janeiro de 2010.
O começo do ano estimula o jogo de previsões. Uma pesquisa no Google com o tópico “previsões para 2010” trouxe 948.000 resultados e o equivalente em inglês (“predictions for 2010”) produziu nada menos que 17.200.000 páginas de internet!
É interessante que ninguém se dê ao trabalho de voltar a 1º de janeiro de 2009 para ver se as predições de então realmente ocorreram. Se isso fosse feito, desbancaríamos muitos daqueles que vivem da credulidade do público. Escapariam apenas aqueles capazes de expressar suas visões em linguagem tão inespecífica – um atributo dos horóscopos – que elas se encaixam em qualquer coisa que venha a acontecer.
Do prognóstico
Os médicos sempre foram pressionados a prever o futuro clínico dos seus pacientes. No século 2 da era Cristã, o médico romano Cláudio Galeno (129-199) escreveu um tratado sobre isso, De praecognitione (Do prognóstico), que, junto com o restante de suas muitas outras obras, influenciou a medicina pelos 1.500 anos seguintes.
O livro mais antigo e mais precioso da minha biblioteca pessoal se chama De optima prædicendi ratione (Da ótima estimativa preditiva), publicado em 1592 pelo médico português Luís de Lemos (1533-1600?), cujo nome latino era Ludovico Lemosio. Professor de medicina em Salamanca (Espanha), ele era o responsável pelo ensino das doutrinas de Hipócrates (460-377 a.C.) e Galeno. Vale lembrar que, na época, Portugal e Espanha estavam unidos em um só reino.
No livro, escrito em latim, Lemos discute como determinar o prognóstico de doenças desde os seus primeiros sintomas até os seus estágios mais avançados. Em especial, ele se baseia na observação dos vários efluentes corporais, do ritmo respiratório, das aparências das extremidades e de dados astrológicos (!). O interessado pode acessar o livro na internet.
Medicina preditiva
Felizmente, a medicina progrediu muito desde Luís de Lemos e já conseguiu abandonar a astrologia ao fazer seus prognósticos. Entretanto, incertezas persistem.
Dizia o grande médico canadense William Osler (1849-1919) no início do século 20 que, se não fosse pela variabilidade entre as pessoas, a medicina seria uma ciência e não uma arte…
Com os notáveis avanços da genômica nos últimos dez anos, estamos mapeando completamente a diversidade genética humana e identificando seus efeitos na saúde de cada indivíduo. O conhecimento do mapa de predisposições genéticas de cada pessoa irá permitir ajustar o estilo de vida a cada genoma e, assim, prevenir o aparecimento de muitas doenças.
A nova medicina se tornará, então, mais preditiva e mais preventiva. Há ainda três outros “p’s”: ela também será personalizada, proativa e participativa. Ao obtermos o conhecimento íntimo da genética de cada pessoa, pretendemos resgatar a medicina como ciência. Diferente da medicina atual, com foco nas doenças e nos doentes, essa medicina genômica visa, essencialmente, a manutenção da saúde.
Da teoria ao desenvolvimento
A teoria é perfeita! Mas como estão se concretizando os avanços conceituais da medicina genômica preditiva? Temos de entender que o seu processo de implantação dependerá do sucesso em duas etapas.
A primeira é a identificação e o mapeamento de todas as variações normais (polimorfismos) do genoma humano. Essa área tem avançado com enorme eficiência e segurança. Os polimorfismos mais comuns do genoma humano são os polimorfismos de base única (SNPs) – já discutidos em uma coluna anterior –, caracterizados por uma simples substituição de base em uma determinada posição genômica. Uma consulta ao Entrez SNP Database revelou que, no atual estágio (NCBI Build 130), já foram registrados mais de 25 milhões de SNPs!!
Além disso, já temos catalogados mais de um milhão de marcadores de inserção-deleção curtos (indels) e, recentemente, tem havido um rápido crescimento da quantidade conhecida de variações de número de cópias (CNVs) de grandes regiões do genoma, que constituem uma das atuais coqueluches genômicas.
A segunda etapa é a associação entre os marcadores de variabilidade genômica e as doenças e características humanas. A medicina genômica não está diretamente interessada nas doenças mendelianas, que são individualmente raras, mas sim nas doenças mais comuns da espécie humana, que dependem de múltiplas contribuições genéticas (isto é, são poligênicas), em conjunto com fatores ambientais (isto é, são multifatoriais).
A hipótese etiológica mais aceita para a ocorrência de doenças poligênicas é a chamada “doença comum/variação comum”. Ela emergiu da observação de que alguns polimorfismos são potentes fatores de risco para doenças genéticas. Por exemplo, a simples presença da base A na posição 1691 do gene do fator V da coagulação do sangue (fator V de Leiden; SNP rs6025), que ocorre em cerca de 4% da população de Belo Horizonte, está ligada a um aumento de 7-8 vezes no risco de trombose venosa, com possibilidade de embolia pulmonar. Além do fator V de Leiden, é possível testar quatro outros SNPs para avaliação do risco de trombose venosa. Dependendo do genótipo obtido no conjunto completo dos cinco SNPs, o risco para o paciente pode chegar a ser mais de 100 vezes maior que o da população normal.
A expectativa, no início das pesquisas de triagem genômica total à procura de correlações entre doenças e marcadores de DNA, era de encontrar milhares de associações desse tipo. O problema é que o número encontrado foi bem menor que o previsto. Mais grave ainda é o fato de a maioria das associações encontradas aumentar o risco em apenas menos de duas vezes. Embora altamente significativas do ponto de vista estatístico, tais associações são pouco úteis do ponto de vista clínico.
Isso criou uma crise na área: estaria incorreta a hipótese “doença comum/variação comum”? Será que estamos estudando os marcadores corretos? Ou poderíamos estar usando modelos genéticos errados ou incompletos? Por exemplo, um artigo intrigante publicado há duas semanas no periódico Nature sugere que os efeitos de uma variante sobre a susceptibilidade a doenças podem depender de qual dos pais ela foi herdada.
Do desenvolvimento à prática médica
Informamos em uma coluna anterior que algumas empresas de biotecnologia já estavam oferecendo genotipagem de centenas de milhares de SNPs diretamente ao consumidor. O serviço mais completo me pareceu ser o deCODEme, da empresa islandesa deCODE Genomics, com a genotipagem de 1 milhão de polimorfismos genômicos (SNPs) por 985 dólares. Por esse preço, deCODEme realizava, com base na genotipagem feita, uma avaliação do risco genético para algumas doenças comuns.
Eu me aventurei a ser genotipado pelo deCODEme e recebi a análise de meu risco para 48 doenças (ver lista parcial na figura ao lado). Os resultados não foram nada espetaculares.
Vejamos minhas predisposições: descobri que tenho um risco apenas 1,08 vezes maior que o da população geral para o desenvolvimento de doença renal crônica, 1,4 vezes para obesidade, 1,5 vezes para degeneração macular senil, 1,4 vezes para asma e artrite reumatoide e 1,06 vezes para câncer de bexiga. Certamente nada que justifique qualquer preocupação ou alteração no meu estilo de vida.
Por outro lado, fiquei sabendo que meu risco de desenvolver diabete tipo 2 (senil) está 1,9 vezes diminuído, o de câncer de próstata é 1,4 vezes menor que o da maioria da população, o de doença de Crohn está 2,5 vezes diminuído e que os de glaucoma, esclerose múltipla e fibrilação atrial são aproximadamente 0,7 vezes o da população geral.
Alguns dados são úteis: caso eu tome o medicamento estatina para baixar o colesterol, o meu risco de complicações musculares (reações graves de miopatia ocorrem em 2% das pessoas) será mínimo e, caso eu tome o anticoagulante warfarina (Marevan), a minha dose inicial poderá ser normal, pois não tenho hipersensibilidade ao fármaco, o que poderia trazer o perigo de uma hemorragia.
Finalmente, me informaram sobre um monte de “abobrinhas” que já sabia: que meus olhos são provavelmente castanhos (são), que meu grupo sanguíneo é O (é), que tolero bem a lactose (correto) e o álcool (correto), que não ficarei calvo antes do 40 anos (não fiquei), que não sou predisposto à dependência de nicotina (parei de fumar há 33 anos) e que sinto gostos amargos (detesto endívias).
Em conclusão: as perspectivas preditivas da medicina genômica são espetaculares, mas, exceto por alguns fatores de risco que podem ser testados isoladamente (ver www.laboratoriogene.com.br), ainda não chegou a hora de fazer estudos genômicos globais. O momento certamente chegará, mas talvez ainda demore um pouco. Fica aqui a promessa de retornar a esse assunto na coluna de janeiro de 2015…
Sergio Danilo Pena
Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais