A consciência aos pedaços

Quem viu Fale com ela , filme de 2001 do diretor espanhol Pedro Almodóvar, certamente terá se emocionado com a história dos dois homens apaixonados por duas mulheres internadas no mesmo hospital, inconscientes após um traumatismo que lhes atingiu o cérebro. Uma delas morre, a outra se recupera. E a que se recupera é justamente a que recebe atenção e estimulação permanentes de seu apaixonado enfermeiro. O filme toca uma questão que intriga a todos nós. Que grau de consciência pode ter um paciente que não se comunica com o mundo externo? Que prognóstico se pode dar para um caso como esse? Que se pode fazer para recuperá-lo da inconsciência? O que de fato é a consciência?

Os neurocientistas já sabem que a consciência não é um fenômeno “tudo-ou-nada”, mas apresenta graus variados de expressão. Estamos menos conscientes quando dormimos do que quando estamos acordados, e menos quando estamos sonolentos após o almoço, do que quando prestamos atenção em algo. O nível de consciência, nesse caso, oscila com o ciclo sono-vigília de todos os dias, e isso pode ser registrado pelo eletroencefalograma (EEG).

De modo semelhante, os indivíduos que sofrem lesões cerebrais graves por traumatismos ou acidentes vasculares podem apresentar ausência completa de sinais de consciência e um EEG estável que se parece com o do sono profundo: é o chamado estado de coma . Muitos não suportam o coma e morrem. Mas alguns desses indivíduos podem evoluir gradativamente para o chamado estado vegetativo , durante o qual abrem os olhos ocasionalmente, fazem fugazes movimentos com o corpo, mas não se comunicam nem parecem apresentar qualquer consciência de si mesmos ou do ambiente que os cerca. Seu EEG, no entanto, mostra ciclos de sono e de vigília semelhantes aos das pessoas normais.

Algumas dessas pessoas permanecem assim por longos anos, e acabam morrendo nessa condição. Mas uma parcela pequena delas evolui ainda mais, alcançando o que se chama atualmente estado de consciência mínima . Nesse caso, dão sinais de comunicação: falam alguma coisa, mesmo sem nexo, seguem alvos visuais com os olhos e passam a realizar alguns movimentos intencionais.

Consciência vegetativa e consciência mínima

As imagens da esquerda mostram a ativação cerebral que ocorre quando se imagina uma partida de tênis. As da direita correspondem a imaginar-se caminhando em sua própria casa. Fica claro que as mesmas áreas são ativadas na paciente e nas pessoas normais usadas como controles, como mostram as manchas coloridas sobre o cérebro. Figura modificada do trabalho de Owen e colaboradores. 

Resultados recentes de pesquisa têm trazido surpresas sobre a capacidade consciente das pessoas nesses estados fronteiriços de consciência, que recolocam em discussão a alternativa que muitos defendem de “desligar os aparelhos”. A mídia deu grande repercussão, há poucos dias, ao trabalho de Adrian Owen e seus colaboradores, na Universidade de Cambridge, Inglaterra.

A equipe de Owen estudou o cérebro de uma mulher de 23 anos que havia sofrido um acidente de trânsito em julho de 2005, entrando em estado vegetativo. Apesar da incapacidade de se comunicar, a moça mostrava atividade funcional nas mesmas áreas cerebrais que as pessoas normais, quando solicitada a imaginar uma partida de tênis, ou a imaginar-se caminhando em sua própria casa. Os pesquisadores concluíram que não apenas ela era capaz de exercitar a imaginação (um aspecto importante da consciência humana), como concordava em seguir a orientação do médico e realizar a tarefa solicitada (o que seria uma espécie de livre arbítrio residual).

Um outro resultado de pesquisa mostrou-se ainda mais surpreendente. Trata-se do trabalho de Henning Voss e uma equipe multicêntrica dos Estados Unidos e da Nova Zelândia. O grupo analisou o cérebro de Terry Wallis, um rapaz que havia sofrido um grave traumatismo cerebral em 1984, quando tinha 19 anos. Após passar por períodos de coma e estado vegetativo, Terry evoluiu para o estado de consciência mínima, até que em 2003, de repente, chamou sua mãe e rapidamente readquiriu uma fala confusa, mas fluente, bem como alguns movimentos oculares e das pernas. Sabia quem era, mas negava suas dificuldades, apresentando uma explicação incorreta, porém racional, para sua condição.

Terry Wallis, paciente que emergiu do estado vegetativo possivelmente através do restabelecimento da conexão entre algumas de suas áreas cerebrais. 

A equipe de Voss analisou o cérebro de Wallis com uma nova técnica de imagem por ressonância magnética capaz de detectar a disposição das fibras nervosas e, portanto, os principais circuitos cerebrais. O exame sugeriu fortemente que durante os 20 anos decorridos após o acidente, alguns dos circuitos cerebrais haviam se reorganizado e restabelecido a comunicação de áreas cerebrais relacionadas à autoconsciência. Outros exames mostraram recuperação também no metabolismo dessas regiões cerebrais, o que assegurou sua funcionalidade. 

Consciência modular
Além das óbvias conotações éticas que esses resultados levantam, muito importantes para definir a conduta dos médicos e das famílias nesses casos-limite de lesão cerebral, os resultados desses trabalhos recentes recolocam em pauta uma hipótese importante a respeito da consciência – o que quer que esse termo signifique. Ela é fragmentária, ou mais precisamente, modular. Os módulos de consciência seriam aspectos de nossa atividade mental produzidos por áreas específicas do cérebro, integradas naturalmente na saúde, mas desconectadas na doença.

A hipótese da consciência modular explica por que encontramos fragmentos de comportamento nos pacientes com graves lesões cerebrais, e explica também por que somos tão diferentes uns dos outros nas nossas habilidades mentais. A plasticidade do cérebro nos permitiria desenvolver mais fortemente alguns dos módulos, deixando os outros em um nível de desempenho minimamente necessário. Ativamos alguns deles porque podemos fazer apenas algumas coisas dentre tantas possíveis ao longo da vida.
SUGESTÕES PARA LEITURA
N.D. Schiff e colaboradores (2002) Residual cerebral activity and behavioural fragments can remain in the persistently vegetative brain. Brain , vol. 125, pp. 1210-1234.
S. Laureys e colaboradores (2006) Tracking the recovery of consciousness from coma. Journal of Clinical Investigation , vol. 116, pp. 1823-1825.
H.U. Voss e colaboradores (2006) Possible axonal regrowth in late recovery from the minimally conscious state. Journal of Clinical Investigation , vol. 116, pp. 2005-2011.
A.M. Owen e colaboradores (2006) Detecting awareness in the vegetative state. Science , vol. 313, pp. 1402.

Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
29/09/2006