Que letra você vê acima?
Você acha que o ambiente cultural e social em que foi criado desde a infância determina o funcionamento do seu cérebro? Talvez você responda a essa pergunta argumentando que as funções mais complexas – cognitivas ou afetivas, por exemplo – possam ser de fato influenciadas pela cultura e pela sociedade, mas não as tarefas mais simples.
Então dê uma olhada na figura ao lado: que letra você percebe? Um A ou vários Ms pequeninos? Observando com atenção, verá os dois. No entanto, medindo o tempo que você levaria para apertar um botão para A ou um botão para M (tempo de reação), pode-se comprovar que você percebe os Ms antes do A – seu tempo de reação terá sido menor para os primeiros.
Isso acontece com a maioria das pessoas ocidentais (brasileiros, americanos, europeus). Mas é diferente para os orientais (japoneses, chineses, coreanos). A maioria deles percebe o A antes dos Ms! Provavelmente, o mesmo ocorre na percepção do quadro do pintor catalão Salvador Dalí (1904-1989), que está abaixo: você perceberá primeiro as figuras femininas vestidas à antiga, e só depois o busto de Voltaire formado por elas. O inverso ocorrerá com os orientais.
Que cena está sendo observada pela mulher no quadro de Dalí?
Os psicólogos sabem há muito que a estratégia de percepção dos orientais é mais holística, isto é, mais global, enquanto a dos ocidentais é mais analítica, detalhista. Sabem também que nós, ocidentais, focalizamos a atenção mais fortemente em nós próprios do que nos outros. Nossa cultura é individualista, centrada na primeira pessoa. O contrário ocorre na cultura oriental, que enfatiza mais fortemente os vínculos sociais e familiares.
Só que, no teste acima, o tempo de reação se inverte (menor para a percepção holística) se, antes de apertar o botão, você for sensibilizado pela leitura de um texto escrito na primeira pessoa do plural (nós). O pronome coletivo modula a percepção, modificando a estratégia detalhista para uma estratégia holística! E o oposto acontece com os orientais, segundo trabalho feito em 1999 pela psicóloga Wendi Gardner e seu grupo, na Universidade Northewestern, Estados Unidos.
O funcionamento do cérebro modificado pela religião
Uma análise crítica do trabalho dos psicólogos sociais poderia argumentar que algo de inato pode distinguir o cérebro dos orientais em relação ao dos ocidentais. Afinal, do mesmo modo que os olhos são puxados nos japoneses e chineses, mas não nos brasileiros e americanos, quem sabe o funcionamento do cérebro possa ser também diferente – constitutivamente e não por influência cultural – nesses dois grupos humanos.
Essa crítica foi recentemente abalada pelo trabalho de um grupo de pesquisadores do Departamento de Psicologia da Universidade de Pequim, na China, sob a liderança de Shihui Han. Eles partiram da diferença bem estabelecida entre a função de duas regiões adjacentes do córtex pré-frontal (aquele que fica bem sob a fronte das pessoas).
A região ventromedial, por um lado, é consistentemente ativada quando pensamos em nós próprios: se somos bonitos ou feios, se estamos felizes ou tristes, se nosso desempenho de ontem no trabalho foi bom ou ruim. É o local do cérebro onde se estabelece a autoconsciência dos indivíduos.
Já a região dorsomedial é ativada quando tentamos nos colocar no lugar de uma outra pessoa, para interpretar seu pensamento ou suas emoções. Você a utiliza quando imagina se o seu interlocutor está alegre ou triste, com base na sua expressão facial ou no seu comportamento. Essa função cognitiva é conhecida como atribuição mental, ou “teoria da mente”.
O julgamento no cérebro de ateus e cristãos
Ao julgar-se a si próprios, os cristãos empregam regiões cerebrais diferentes das pessoas não religiosas. Reproduzido de Han, S e Northoff, G. (2008) Nature Reviews. Neuroscience, vol. 9:646-654.
Muito bem. Que fizeram os pesquisadores chineses? Selecionaram um grupo de pessoas sem religião e outro composto por cristãos, e registraram imagens de ressonância magnética funcional durante tarefas mentais em que os sujeitos tinham que julgar a si próprios ou a outras pessoas.
Após visualizar ou ouvir adjetivos como “leal”, “desleal”, “corajoso”, “infantil”, cada um deles era solicitado a escolher aqueles que mais apropriadamente se adequassem a si próprio ou, alternativamente, a alguma pessoa pública conhecida. As imagens, processadas por computador, revelam quais regiões cerebrais estavam mais ativas durante o desempenho da tarefa mental solicitada, e podem assim indicar quais regiões são empregadas no autojulgamento e no julgamento de terceiros.
O experimento indicou que os chineses cristãos ativam o córtex pré-frontal dorsomedial quando atribuem adjetivos a si próprios, enquanto os indivíduos não religiosos ativam a região ventromedial. Levando em conta a função dessas duas regiões, os pesquisadores concluíram que os cristãos se julgam “pondo-se no lugar de Deus”, já que sua religião lhes ensina que a moral se estrutura “na perspectiva de Deus”.
Essa operação psicológica é típica da atribuição mental ou “teoria da mente”: é preciso imaginar-se na posição de Deus para julgar-se a si próprio. Já os não religiosos se julgam tomando como referência a sua própria história de vida e suas características próprias, sem se colocar na posição de um observador externo, tarefa típica do córtex pré-frontal ventromedial.
Tudo indica, portanto, que a cultura de fato modula o funcionamento do cérebro. A organização cerebral é a mesma em todos os indivíduos, sejam eles chineses, brasileiros, cristãos ou budistas. O que muda é o modo de usar…
SUGESTÕES PARA LEITURA
Gardner, W.L. e colaboradores (1999) “I” value freedom, but “we” value relationships. Psychological Science, vol. 10: pp. 321-326.
Han, S. e colaboradores (2008) Neural consequences of religious beliefs on self-referential processes. Social Neuroscience, vol. 3: pp. 1-15.
Han, S. e Northoff, G. (2008) Culture-sensitive neural substrates of human cognition: a transcultural neuroimaging approach. Nature Reviews. Neuroscience, vol. 9: pp. 646-654.
Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
31/07/2008