A face invisível do lixo

 
O químico francês Antoine Lavoisier (1743-1794) concluiu que nada se cria, nada se perde – tudo se transforma. Os livros-texto de ecologia nos dizem o mesmo, de outra forma: o ciclo da matéria – ao contrario daquele da energia – é fechado, como a roda de um moinho, movida pelo rio, este último simbolizando o ciclo aberto da energia. 

 

O ciclo da energia é aberto porque a energia luminosa é absorvida pelos vegetais, transformada em energia química, consumida pelos próprios e pelos herbívoros e carnívoros, que a transformam em trabalho e calor.

Esse é um sistema em tempo real: se o Sol se apagar, num improvável cataclismo cósmico, ou se seus raios forem bloqueados pela atmosfera terrestre, o que já é bem menos improvável, a vida se extinguirá em pouco tempo, por falta de produção de matéria-prima via fotossíntese. Parece que os adoradores do Sol sabiam o que estavam fazendo.

E o sistema fechado da matéria? Começa com a absorção de substâncias simples, como CO 2 , água, nutrientes e minerais pelos vegetais para a produção de substâncias orgânicas complexas. Os seres vivos devolvem ao ambiente as substâncias simples por meio da respiração, da excreção e da decomposição, permitindo sua reabsorção pelos vegetais.

Portanto, a matéria nunca desaparece: ela é transportada, transformada, só muda de forma e lugar. Do pó viemos, ao pó voltaremos. Mas nós, humanos, tão numerosos, eficientes e irracionais, inventamos o ciclo aberto de matéria. Extraímos matérias-primas naturais, as transformamos em produtos de consumo que usamos e descartamos. Usamos uma garrafa PET por alguns minutos ou dias, mas ela leva milhares de anos para se degradar e devolver seus componentes químicos para o ciclo natural, aberto, da matéria.

A face mais visível e incômoda dessa economia linear, em ciclo aberto, é a acumulação de montanhas de lixo, um problema cada vez mais agudo para todas as cidades, incluindo a nossa. E a sua. Temos a guerra do lixo, a máfia do lixo, e os problemas relativos ao lixo estão na agenda de qualquer administrador urbano. Claro, existe a reciclagem, uma tentativa recente de retorno a um ciclo fechado, mas que é aplicável apenas a uma pequena fração do que fabricamos.

O outro lado do problema
Mas existe uma face invisível, insidiosa e muito mais complexa deste ciclo aberto. Ao extrair metais que estão em depósitos minerais inacessíveis à biosfera e introduzi-los em produtos e alimentos, aumentamos suas concentrações no ar, na água, no solo e no nosso próprio corpo. Estima-se que cerca de 50% do mercúrio (Hg) na biosfera – e, portanto, no seu prato – está lá devido a atividades humanas.

O esquema representa a molécula de DDT (sigla para dicloro-difenil-tricloroetano). Essa substância foi sintetizada em 1874 e usada amplamente como pesticida a partir dos anos 1940. Porém, com a descoberta de seu efeitos sobre a saúde de diversas espécies de animais, seu uso foi banido de vários países nos anos 1970 (arte: Ben Mills).

Para outros metais, essa porcentagem pode ser muito maior. Para substâncias artificiais, a conta é obviamente mais simples: elas simplesmente não existem na natureza. Portanto, se lá estiverem, é culpa nossa. Assim, qualquer ser humano tem estrôncio-89/90 em seus ossos, PCB e DDT em sua gordura. Da mesma forma, toda mulher tem DDT em seu leite, mesmo uma mãe esquimó, embora esse produto tenha sido utilizado décadas atrás, e a milhares de quilômetros dali.

(Pequeno parênteses: o estrôncio-89/90 é um produto radioativo de fissão gerado por antigas explosões atômicas na atmosfera; os PCBs são bifenilas policloradas, compostos muito usados em transformadores, circuitos eletrônicos, pesticidas e outras aplicações; por fim, o DDT, sigla para dicloro-difenil-tricloroetano, é um inseticida sintético, atualmente banido.)

O mesmo vale para os produtos de degradação de hormônios sintéticos, inseticidas, herbicidas e fungicidas, fármacos e as milhões de substâncias químicas que inventamos continuamente. Entre essas, as mais preocupantes são as que têm maior persistência ambiental, aliada à alta toxicidade e alta biomagnificação (capacidade de ter sua quantidade aumentada ao longo da cadeia alimentar). Esses compostos são os chamados POPs – sigla para poluentes orgânicos persistentes –, grupo que inclui os já citados DDT, PCB, dioxinas e outros.

A biomagnificaçao desses compostos promove o efeito inverso ao da diluição: ela aumenta as concentrações do poluente na passagem de um nível a outro na cadeia alimentar. Assim, a concentração de DDT em água pode ser de partes por trilhão e, em águias ou focas, da ordem de partes por mil, ou seja um bilhão de vezes superior.

Há outras substâncias não tão persistentes ou tóxicas, mas muito indesejáveis: os disruptores endócrinos, compostos artificiais projetados para os mais diversos fins, cuja estrutura e função mimetiza a de hormônios naturais humanos, em particular os estrógenos. Em muitos casos a substância não tem ação estrógena, mas seus produtos de degradação ambiental sim.

Portanto, queiramos ou não, e estejamos onde estivermos, estar vivo significa inalar e ingerir substâncias tóxicas de origem humana – em baixas concentrações, porém de forma crônica – que afetam nossa saúde imunológica, reprodutiva, mental. Difícil não lembrar de Fausto, protagonista do romance homônimo do alemão Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832). Ele vende sua alma ao diabo em troca de juventude, poder e riqueza, até que este, sempre pontual, retorna para cobrar o prêmio combinado.

A fauna carismática
Na coluna anterior prometemos que falaríamos da fauna carismática. Pois foi justamente o declínio das populações de águia-calva, símbolo dos Estados Unidos, que chamou a atenção para os efeitos do DDT: ao perturbar o metabolismo do cálcio nessas aves, o DDT fragilizava seus ovos, que se rompiam sob o peso das diligentes águias chocadeiras.

A morte de grandes grupos de golfinhos por encalhe em diferentes regiões do globo talvez esteja ligada à contaminação por toxinas de origem industrial (foto: Wikimedia Commons).

Mais carisma? Os golfinhos! Mamíferos, alegres, brincalhões, inteligentes, estrelam series hollywoodianas (Flipper, lembra?) e vivem em águas doces e no oceano. Não usam inseticidas, produtos de higiene pessoal, têxteis, papéis e muito menos – por razões óbvias – retardantes de chama. Mas seus fígados e rins contêm, entre muitas outras toxinas de origem industrial, compostos polibromados (PBDEs) e fluorados (perfluorooctano, PFOS), que fazem parte da composição desses produtos e apresentam diversos dos efeitos tóxicos mencionados acima.

Talvez por isso encontramos periodicamente, em diferentes regiões do globo, grandes grupos de golfinhos mortos por encalhe. Talvez por isso, talvez não. Outras toxinas, talvez? Ou um vírus que os atacou por estarem imunodeprimidos?

Seja qual for a causa, esses episódios servem de alerta para nós. Os mamíferos marinhos são justamente considerados sentinelas ambientais: como nós, são mamíferos e estão no topo da cadeia alimentar. Em contraste conosco, no entanto, eles vivem na água, longe das fontes de poluentes, e têm uma dieta menos variada. Talvez o golfinho agonizante, ao entrever os humanos que tentam resgatá-lo inutilmente, pense: eu sou vocês… amanhã.


Jean Remy Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
20/10/2008