À flor da pele

 

Cerâmica mostrando o herói grego Aquiles cuidando das feridas de seu amigo Patroclus.

A pele é um exemplo de estrutura moldada evolutivamente para resistir rotineiramente a estresses, sem apresentar alterações em sua morfologia ou fisiologia mesmo estando sujeita a agressões externas constantes. As adaptações da pele para evitar esses danos e seu fascinante mecanismo para reparar lesões em suas células e em sua estrutura tecidual têm sido recentemente foco de um intenso esforço de pesquisas.

A pele apresenta uma série de características em suas duas porções — externa (epiderme) e interna (derme) — que a tornam uma barreira contra agressões. A epiderme, por exemplo, é composta por células denominadas queratinócitos, que estão distribuídas em diversas camadas sobrepostas formadas por células firmemente unidas entre si. Os queratinócitos originam-se na camada basal da epiderme e são deslocados para a superfície da pele. Durante esse processo, essas células tornam-se anucleadas e são preenchidas por queratina, uma proteína que impermeabiliza a superfície da pele e impede sua desidratação e danos causados por agressões ambientais.

A derme, por sua vez, é rica em vasos sangüíneos, meio extracelular e fibras protéicas que permitem que essa região absorva forças mecânicas, impedindo traumas na pele e nos tecidos internos. Vários tipos celulares, como adipócitos e fibroblastos – células produtoras de meio extracelular e filamentos protéicos –, estão presentes nessa região. Além disso, leucócitos (células relacionadas à defesa imune) estão presentes na derme ou podem ser deslocados através dos vasos sangüíneos e linfáticos para esse local para combater invasores.

Mecanismos de reparo de lesões
Além dessas adaptações para evitar lesões, a pele apresenta mecanismos protetores que são prontamente ativados após danos. Esses mecanismos permitem que as células afetadas sejam reparadas ou eliminadas e a região danificada tenha sua estrutura normal reconstituída o mais rapidamente possível para evitar a invasão de microrganismos e a perda de fluidos teciduais.

Imagem de microscopia de fluorescência mostrando anel de actina e miosina (em verde) que se forma durante a fase inicial do processo de cicatrização de feridas. (Reprodução: Nature Cell Biology )

Lesões na pele podem levar à ruptura da película externa das células (membrana plasmática). Porém, as células de mamíferos podem sobreviver a perfurações enormes (para os padrões celulares!) em suas membranas plasmáticas. Rupturas com cerca de um micrômetro (a milésima parte do milímetro) são imediatamente vedadas através da contração de um anel – formado pelas proteínas actina e miosina –, disposto em torno do local lesionado. Posteriormente, membranas derivadas de organelas conhecidas como lisossomos e endossomos fusionam-se no local danificado – formando vesículas – e reconstituem a membrana plasmática dessa região.

Após vedarem a ruptura em sua superfície, as células procuram reconstituir suas organelas danificadas, assim como a composição iônica e protéica intracelular. Íons de cálcio que penetram nas células através dessas perfurações ativam a fusão das vesículas com a membrana plasmática, assim como genes relacionados ao aumento da migração e proliferação celular para o restabelecimento da estrutura do tecido lesionado. Essas rupturas na membrana celular também permitem que uma citocina denominada fator básico de crescimento de fibroblastos (bFGF) seja liberada no meio externo para ativar a proliferação celular nos locais danificados.

Lesões maiores que afetem a estrutura da pele são reparadas pela ação conjunta de diversos tipos celulares por meio de um mecanismo conhecido como cicatrização. Após uma ferida na pele, o local afetado é preenchido por um tampão de coagulação, formado por uma rede de proteínas sangüíneas associadas a plaquetas. Essa estrutura emergencial evita a perda de líquido tecidual e a invasão de microrganismos. A seguir, macrófagos e leucócitos sangüíneos invadem a região e eliminam bactérias e células danificadas. Essas células de defesa imune também liberam moléculas que estimulam a reestruturação tecidual.

À esquerda, fases do processo de cicatrização na pele: 1) fomação do tampão de coagulação; 2) nova epitelização por queratinócitos; 3a e 3b) fim do processo de epitelização e formação da cicatriz. (Fonte: Charité – Universitätsmedizin Berlin ). À direita, imagem de microscopia de varredura mostrando a cicatrização em embriões: podem ser vistos queratinócitos na borda da ferida (área mais escura) na região inferior esquerda e o tampão de coagulação formado por proteínas sangüíneas e plaquetas (região mais clara no canto superior direito). (Fonte: Departments of Anatomy and Surgery/ University College London ). 

 

Posteriormente, surge no local um tecido de granulação rico em macrófagos fagocitários e fibroblastos, responsáveis pela contração das bordas da ferida e síntese de fibras para reestruturar o tecido lesionado. Novos vasos capilares também são gerados para nutrir as células no local afetado. Queratinócitos são ativados e migram para realizar uma nova epitelização nas bordas da ferida. Nos meses seguintes à lesão, a região da ferida é constantemente remodelada e forma-se uma cicatriz composta por grandes feixes de fibras colágenas.

 

Uma grande variedade de compostos químicos é liberada pelas células durante a cicatrização. Algumas dessas moléculas modulam a migração de outras células para o local afetado, outras estimulam a multiplicação celular ou ativam a degradação e a remodelagem da matriz extracelular no local.

 

Apesar de terem sido criados recentemente modelos experimentais que permitem a análise de diversos aspectos da cicatrização da pele, há muito que se progredir nessa área, pois ainda somos incapazes de avaliar o papel desempenhado por uma parte significativa das dezenas de componentes envolvidos nesse fascinante e delicado processo. 

 

 

Jerry Carvalho Borges

Colunista da CH On-line

06/10/2006