A genética dos grandes atletas

Um dos meus ídolos pessoais é o mineiro Alberto Santos Dumont (1873-1932). Diz a lenda que, quando ele era ainda criança, lhe perguntaram “Homem voa?” – ele respondeu desafiadoramente: “Voa!!!”. E voar ele voou, aos 28 anos de idade, contornando a Torre Eiffel em 1901 com um balão dirigível. O feito tornou-o um super-herói da aviação e um dos homens mais famosos do planeta na época.

Os humanos não precisam de aviões para voar

Mas os humanos não precisam de aviões para voar – basta-lhes ter uma habilidade atlética que lhes permita alçar voo com sua própria musculatura, como verdadeiros Ícaros esportivos. Vejam como exemplo o vídeo a seguir, do grande atleta americano Michael Jordan (1963-), apelidado de “Air Jordan”.

A glória do(a) grande atleta

Na Grécia antiga, o vencedor de um evento olímpico tornava-se um semideus. Ele era premiado com um ramo de oliveira, recebia grandes somas de dinheiro (em Atenas, recebia 500 dracmas, uma pequena fortuna) e muitos prêmios. Escultores criavam suas efígies e os poetas compunham e recitavam odes que os louvavam.

Desde então se discute o que engendra um atleta de elite e como promover sua formação. Já recebi dezenas de consultas de jornalistas esportivos sobre esse tema, geralmente em época de Olimpíadas ou de outros grandes eventos esportivos. Neste ano teremos a 19ª Copa do Mundo de futebol, de 11 de junho a 11 de julho na África do Sul. Assim, o assunto retornará à baila.

Repito: o que faz um atleta de elite? Aqui podemos adaptar uma famosa frase de William Shakespeare (1564-1616) em sua peça Décima-segunda noite: “Alguns [atletas] nascem grandes, alguns conseguem grandeza, e alguns têm a grandeza lançada sobre eles”.

A constatação de que indivíduos que chegam ao píncaro do atletismo compartilham características físicas e fisiológicas que muitas vezes são inatas sugere que a genética tenha um papel importante na produção de um grande atleta.

De fato, um considerável número de “polimorfismos de melhora de desempenho” (performance enhancing polymorphisms, ou PEPs, na sigla em inglês) já foi identificado no genoma humano. Exemplos incluem variações genéticas de genes importantes na função cardíaca e respiratória, genes de receptores adrenérgicos, genes do DNA mitocondrial, genes que influenciam o fluxo sanguíneo, genes que afetam a estrutura muscular (com destaque para o gene ACTN3 da alfa-actinina-3) e o gene da enzima conversora de angiotensina (ECA).

Não há evidência genética de qualquer diferença geográfica ou “racial” na habilidade esportiva

Quando fazemos o exame da frequência desses PEPs em populações de diferentes continentes, observamos que as diferenças são discretas. Assim, não existe nenhuma evidência genética de que haja qualquer diferença geográfica ou “racial” (entre aspas para enfatizar o fato de que, do ponto de vista genético, raças humanas não existem) em habilidade esportiva.

O sucesso de indivíduos de diferentes cores e regiões geográficas em certos esportes aparentemente tem muito mais a ver com ambientes de criação (ver abaixo) e oportunidades de mercado de trabalho do que propriamente com qualquer “fator genético”. Vale lembrar que as principais estrelas do basquetebol americano na atualidade são afro-americanos, mas no início do século 20 eles eram em sua maioria brancos judeus.

Gênese complexa

Certamente gostaríamos de saber até que ponto as combinações dos polimorfismos genéticos de alta performance influenciam a capacidade física dos atletas. Recentemente, muitos pesquisadores têm concentrado a atenção na ideia de que não basta ter variantes específicas em alguns poucos genes, mas que, para elevada expressão atlética, são necessárias amplas constelações de variantes genéticas propícias que funcionam coordenadamente.

Relembro aqui o fato, já discutido anteriormente, de que temos um genoma singular e personalíssimo que é caracterizado por uma determinada combinação de variantes genéticas. Entretanto, essa constelação específica, que pode estar ligada a determinadas habilidades, inclusive esportivas, é geneticamente efêmera, sendo forçosamente quebrada na reprodução. Os filhos de um atleta vão receber apenas 50% de genes paternos, sendo os outros 50% herdados da mãe.

É por isso que irmãos podem ter constelações de variantes gênicas relativamente similares. Isso pode ser constatado empiricamente em exames de compatibilidade genética para doação de órgãos que dependem de diferentes locos do complexo HLA. Raramente o pai ou a mãe podem ser doadores de órgãos para filhos. Entretanto, é muito mais provável que entre irmãos haja concordância de todos os alelos relevantes, permitindo que eles possam doar órgãos entre si com maior segurança.

Frequentemente vários membros de uma mesma família são esportistas de elite, reforçando a ideia da importância genética. Mas dentro desse modelo de “constelações gênicas” podemos esperar que este fenômeno seja mais comum entre irmãos do que em pares de pai-filho. 

Certamente inúmeros casos de irmãos atletas de elite vêm à mente: Sócrates e Raí, Zico e Edu, e Bobby e Jack Charlton, estes dois últimos da seleção inglesa que foi campeã mundial em 1966.

Famílias compartilham não somente genes, mas também o ambiente

Por outro lado, também vêm à mente casos em que filhos não conseguiram ter o sucesso atlético dos pais, especialmente o de Pelé (ver abaixo), o maior futebolista de todos os tempos. Nem seu pai, Dondinho, que jogou no Fluminense, nem seu filho, Edinho, que jogou no Santos, como o pai, foram atletas de elite.

Não podemos nunca nos esquecer que famílias compartilham não somente genes, como também o ambiente – o interesse e prática de esportes sendo um dos principais deles. Independentemente da genética, é mais provável surgir um grande atleta em uma família de esportistas, onde a prática do esporte é sempre ’o assunto do dia‘, do que em uma família de intelectuais ou músicos, nas quais nem sempre há valorização dos esportes e, às vezes, não há sequer uma bola em casa.
 
Antes de continuar, vejamos um vídeo de jogadas do genial Edson Arantes do Nascimento (1940-), o Pelé, certamente o maior atleta da história brasileira.
 

O que tornava Pelé um futebolista de elite, um superatleta? Pudemos ver no vídeo sua fantástica habilidade física, velocidade explosiva, excepcional coordenação psicomotora e talento de perceber a jogada em frações de segundos e reagir apropriadamente. Além disso, Pelé tinha grande resistência física e uma fantástica capacidade de se manter sadio, apesar de uma infinidade de agressões físicas.  Adicionalmente, ele tinha enorme motivação, dedicação, disciplina e saúde mental, especialmente para lidar com as pressões psicológicas das decisões esportivas. Tudo isso tem raízes complexas, tanto genéticas quanto ambientais.

Vale a pena assistir também mais abaixo ao vídeo da maravilhosa atleta sul-coreana Kim Yu-Na (1990-). Em sua atuação na final da Olimpíada de Inverno de 2010, ela conquistou a medalha de ouro e bateu o recorde mundial de pontuação em patinação artística no gelo.

Imaginem a dedicação e disciplina envolvidas na preparação de suas apresentações. Elas dependem de excepcional habilidade atlética, mas não só: cada movimento, cada salto, cada posicionamento das mãos e cada sorriso são ensaiados centenas ou milhares de vezes, por inúmeras horas, dia após dia. Esse é o preço da grandeza. 

Com o sucesso na elucidação funcional do genoma humano e o conhecimento íntimo de nossa genética, esperamos em breve ter uma melhor idéia dos detalhes da estranha mistura de genética e ambiente que faz o esportista de elite. A ignorância atual só aguça a nossa admiração e a nossa reverência aos grandes atletas, que, embora humanos como nós, são capazes de feitos quase divinos.

Sergio Danilo Pena
Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais