A história do sucesso

Pode parecer estranho, mas acabei de ler um livro intitulado História do sucesso. Ou melhor, esse é o subtítulo. O título é Outliers, traduzido para o português como Fora de série (Sextante, 2008). Em inglês, o livro é acompanhado de uma orelha arrebatadora sobre Malcolm Gladwell, o autor.

Livro Outliers
Capa do livro ‘Outliers’, traduzido para o português como ‘Fora de série’.

Segundo esse pequeno texto da capa, Gladwell teria “mudado a forma como entendemos o mundo” em seu primeiro livro e, no segundo, “mudado a maneira como nós refletimos sobre o pensamento”. Em Outliers, a promessa é que ele “transformaria a forma como entendemos o sucesso”. Eu mal podia esperar para começar a ler.

Gladwell parte de um princípio simples e ambicioso: o de que gênios não existem, e o talento não é nada se não for desenvolvido em um contexto social e culturalmente favorável.

Parece óbvio, e é mesmo. Mas nem tanto quando lembramos que estamos falando de um livro escrito por um americano (ainda que nascido na Inglaterra e criado no Canadá) para americanos, leitores imersos em uma cultura fortemente influenciada pela ideia dos self-made men, dos homens que constroem seus destinos baseados apenas no mérito e na força de vontade.

Talento e oportunidade

O autor mostra como crianças (de 5 e 6 anos) muito estimuladas desde jovens têm mais probabilidade de sucesso do que outras – em um capítulo altamente sedutor, demonstra que os grandes times canadenses de hóquei são formados por atletas nascidos nos primeiros meses do ano.

Como as classes são divididas por ano, aqueles nascidos em janeiro e fevereiro seriam maiores e mais fortes do que os outros e, assim, mais afeitos a entrar nos grupos de treinamento especial. Com 15 anos, já estariam há dez anos treinando mais tempo e com melhores técnicos, o que os faria muito melhores do que os outros, nascidos, por exemplo, em novembro. Estes até poderiam também ser talentosos, mas não teriam tido as mesmas chances. Talento, então, seria também uma questão de oportunidade.

Talento, então, seria também uma questão de oportunidade

Em uma análise que pretende combinar elementos de psicologia, educação, sociologia e história, Gladwell basicamente argumenta que, sem se levar em conta o contexto em que uma pessoa nasceu e foi criada, a origem e a formação acadêmica de seus pais, o grau de envolvimento destes com a educação de seus filhos, o tempo devotado ao estudo ou à prática de algo – 10 mil horas é seu número mágico –, é praticamente impossível explicar por que algumas pessoas têm sucesso e outras não.

Essa é a primeira parte do livro. Ao terminá-la, fiquei pensando menos sobre o que, de fato, torna as pessoas bem-sucedidas em si e mais nessa nossa obsessão (não apenas americana) com o sucesso. No livro, ele é praticamente uma precondição da felicidade.

E como sucesso é sinônimo de carreira bem-sucedida e conta bancária recheada, quem não está enquadrado nessa categoria é automaticamente um loser – um perdedor. Não há espaço para quem tem outras aspirações. Ou para quem não tem aspiração nenhuma.

A cultura e o indivíduo

Essa primeira parte do livro é a mais explorada nas resenhas escritas a respeito (veja, por exemplo, as da revista Businessweek e do The New York Times). Mas, para mim, é na segunda que mora o maior problema. Intitulada ‘Legado’, a segunda parte é basicamente uma aplicação da teoria anteriormente desenvolvida, só que desta vez para culturas. Não é exatamente a ideia de que algumas culturas, assim como as pessoas, têm mais chance de sucesso do que outras. Mas é quase isso.

Malcolm Gladwell
O autor americano Malcolm Gladwell, durante a conferência PopTech! 2008. (foto: Kris Krüg/ CC BY NC 2.0)

Isso fica claro quando Gladwell tenta desenvolver sua “teoria étnica dos acidentes aéreos”.  Citando o caso, ocorrido em 1990, de um avião pilotado por colombianos que aterrissaria no aeroporto JFK, em Nova Iorque, ele argumenta que as dificuldades dos pilotos em relatarem para a torre de comando que o avião estava ficando sem combustível seriam culturais. Criados em uma cultura altamente hierarquizada, eles não teriam tido, em uma emergência, a mesma reação que alguém cuja criação tivesse ocorrido em uma sociedade mais igualitária, como a americana, por exemplo.

Em uma análise de arrepiar os estudiosos contemporâneos da cultura, Gladwell transforma as culturas quase em camisas-de-força para explicar a ação individual. Para fugir do simplismo que atribui todo mérito ao indivíduo, o autor cai no extremo oposto: o determinismo cultural, do qual nem mesmo o mais industrioso dos seres humanos parece conseguir sair.

Gladwell transforma as culturas quase em camisas-de-força para explicar a ação individual

Ao fazer isso, deixa de ver as culturas como fenômenos complexos, com os quais os indivíduos constroem diferentes relações, a partir de suas diferentes posições na sociedade. Assim como não é possível afirmar que cada cultura tem uma definição, também não dá para dizer que os indivíduos pertençam a uma cultura – como no caso dos pilotos colombianos –, nem que a utilizem da mesma forma como se abre uma gaveta para escolher a roupa que se quer usar.

A relação do indivíduo com as suas culturas é bem mais complexa e, por isso mesmo, irredutível à construção de variáveis tão assertivas quanto as apresentadas no livro. (Uma crítica de uma das resenhas, aliás, fala justamente que Gladwell apresenta argumentos extremamente convincentes para provar suas hipóteses, mas nada diz sobre as evidências que não corroboram suas ideias… Como dizem os engenheiros, isso é fazer conta ao contrário: já se sabe o resultado de antemão).

Em tempo: ainda que discordando de quase tudo o que Gladwell escreveu, acho que o livro tem méritos. O principal deles é o de suscitar a reflexão. Se livro bom é aquele que faz pensar, não dá para dizer que Outliers é ruim. Mas “fora de série” não é.

Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro