A honra e as revoluções

Como as sociedades mudam? A pergunta embala inúmeros historiadores e filósofos, cujas respostas variam conforme a época em que vivem, as teorias nas quais acreditam e suas próprias ambições intelectuais.

Em tempos de ocupação da Wall Street (coração do centro financeiro de Nova Iorque) por jovens manifestantes e revoltas no mundo árabe, o filósofo anglo-ganês Kwame Appiah, professor da Universidade de Princeton (Estados Unidos) conhecido por seus estudos de linguagem, defende uma ideia que parece até meio fora de moda: a honra. Isso mesmo. Para ele, a honra foi um importante motor de mudança nas sociedades nos últimos 200 anos.

Livro The Honor CodeConhecido do público brasileiro por seu livro Na casa de meu pai: a África na filosofia da cultura (Contraponto, 1997), Appiah publica agora a obra The Honor Code: how moral revolutions happen, com lançamento previsto para março de 2012 no Brasil pela editora Companhia das Letras.

Dessa vez, ele tenta entender como, olhando para o passado, nos deparamos com práticas tão chocantes sem que algo tivesse sido feito para modificá-las. Ao se perguntar “o que estávamos pensando que não fizemos nada para acabar com tal situação?”, ele arrisca afirmar que atitudes deploráveis só chegaram ao fim quando a honra – dos indivíduos ou das nações – foi atingida.

Isso teria acontecido na Inglaterra do início do século 19, tanto no caso do fim dos duelos da aristocracia – a certa altura considerados absurdos e ridículos – quanto em relação à proibição do comércio de escravos.

Outro exemplo ocorreu na China do início do século 20, com o fim da prática de enfaixar e quebrar os pés das mulheres chinesas para que permanecessem pequenos. E estaria acontecendo hoje em dia com os crimes de honra contra mulheres no Paquistão, que ainda não geraram nenhuma revolução moral, mas (é o que Appiah espera) ela estaria a caminho. 

Ofensa à honra

Para Appiah, nenhuma dessas mudanças teria ocorrido pela força de argumentos morais. Embora a sensibilidade e a compaixão em relação ao sofrimento do outro tenham crescido substancialmente na Europa do século 18, não teriam sido os argumentos morais contra essas práticas que as teriam destruído. As pessoas não deixam de aceitar a situação porque o que está acontecendo é errado. Elas mudam quando sentem vergonha, quando sua honra está em perigo.

Talvez o caso da China tenha sido, dos três primeiros (o quarto ainda estaria por vir), o mais convincente. Séculos e séculos de denúncias contra a prática de enfaixar os pés das mulheres chinesas para impedir que eles crescessem não foram suficientes para acabar com ela. Muito pelo contrário: antes restrita à realeza e às famílias ricas, aos poucos o costume de enfaixar o pés foi sendo adotado por toda a sociedade chinesa, tornando-se cada vez mais popular, até mesmo nas áreas rurais. Ter os pés pequenos, além de ser bonito, era fundamental para ter um bom casamento e um bom status social.

Para os intelectuais chineses reformistas, os pés pequenos das mulheres tornavam a China ridícula aos olhos dos outros países

Só com as reformas do fim do século 19, a questão dos pés das mulheres chinesas começou a ocupar o lugar que merecia na agenda política do Império chinês. Para os intelectuais chineses reformistas, os pés pequenos das mulheres tornavam a China ridícula aos olhos dos outros países – na verdade, dos países europeus civilizados (embora Appiah não diga, é isso o que ele quer dizer). Para estabelecer relações em pé de igualdade com as outras potências, eles deviam abandonar seus “bárbaros costumes”.

E assim foi. Em 1912, a prática foi proibida na China. Mesmo que ainda tenha persistido em algumas regiões do país até a década de 1940, não deixa de ser curioso que, depois ter existido por mais de 900 anos (desde o século 10), em tão pouco tempo ela tenha chegado ao fim. Hoje só existe em mulheres muito idosas, marcas de um tempo que já passou.

Raízes múltiplas

Mas assim como é difícil atribuir o fim dos pés pequenos das mulheres chinesas apenas à desonra internacional, isolar um único fator como responsável por mudanças tão significativas em sociedades tão diferentes é o ponto frágil do argumento central do livro.

Como toda interpretação ambiciosa e generalizante, ela corre o risco de não resistir a um olhar mais acurado sobre cada um dos casos analisados. Vide a crítica de David Brion Davis, historiador especialista em abolição da escravidão no Império britânico, ao capítulo sobre o fim do tráfico de africanos publicada na New York Review of Books.

Escravos
O comércio de escravos na Inglaterra no século 19 é outra prática que teria sido proibida por ter se tornado um perigo à honra da nação, mas o argumento é contestado por historiadores. (foto: Wikimedia Commons)

Da mesma forma, embora seja impossível compartilhar qualquer simpatia por práticas tão repulsivas como as descritas no livro, também é difícil assumir como universal, ainda que apenas nos últimos 200 anos, o conceito de honra adotado por Appiah.

Mesmo que, como ele afirma, “duelar tenha sido sempre homicida e irracional, diminuir os pés tenha sempre sido de uma dor alucinante; escravidão tenha sempre sido um assalto à humanidade do escravo”, não dá para deixar de pensar que, embora essas três práticas tenham sido de fato sempre assim, elas nunca foram só isso.

Para não parecer a historiadora rabugenta vociferando contra as idiossincrasias dos filósofos, quero dizer que gostei do livro. Contra as muitas vezes cansativas contextualizações dos historiadores, é inspirador ler um texto livre de contrangimentos factuais e compromissos teóricos.

Mas não posso terminar sem dizer que acabei o livro com a sensação de que faltou explicar por que seguimos substituindo práticas sociais deploráveis como a de apequenar os pés das mulheres chinesas por outras, tão deploráveis quanto as anteriores. Nos falta honra? Ou ela não é mais capaz de alimentar revoluções morais?

Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
Pós-doutoramento na Universidade de Michigan (bolsista da Capes)