Estarrecidos, acompanhamos diariamente pela mídia histórias impressionantes como a que dominou as manchetes deste mês. Um rapaz usuário de drogas, possível portador de uma doença mental, confessa ter assassinado um humorista famoso e seu filho. Outro jovem, seu amigo, tendo conduzido o assassino à cena do crime em seu carro, declara ter fugido pouco antes do assassinato, ao contrário do que diz a esposa da vítima, testemunha dos fatos. A polícia entra em ação tentando esclarecer qual a real participação do amigo, além de provar a culpa do principal suspeito.
O assassino confesso é realmente esquizofrênico? O amigo estaria mentindo? A esposa que testemunhou os fatos tinha condições psicológicas, durante um evento tão traumático, para discernir o que realmente aconteceu?
Independentemente do resultado das investigações, o crime será levado à justiça, e os acusados serão declarados culpados ou inocentes pelo juiz, seguindo o voto majoritário dos jurados. O juiz bate o martelo, portanto, observando a tradição jurídica, que leva em conta a opinião de um grupo de cidadãos que ouve os envolvidos – acusados, testemunhas, advogados, promotores –, analisa as provas e chega a uma conclusão final: culpado ou inocente.
Dentre as provas que os jurados examinam, estão evidências derivadas da ciência: análises bioquímicas e genéticas, avaliações da composição física de vozes gravadas em telefones, reconstruções do percurso de acusados e vítimas por meio do GPS. E, recentemente, registros eletroencefalográficos, neuroimagens por ressonância magnética, testes neuropsicológicos. A neurociência chegou aos tribunais.
A expectativa é que a neurociência permita identificar na atividade cerebral as emoções, motivações, delírios e decisões racionais dos envolvidos em crimes e outras demandas judiciais.
Mente e cérebro
São poucos, atualmente, os que duvidam que a mente deriva do cérebro. Tal convicção baseia-se em uma avalanche de estudos científicos a partir de experimentos feitos em animais, estudos de lesões cerebrais ocorridas em pessoas e diversas análises por meio de técnicas capazes de registrar a atividade das diferentes regiões do cérebro durante o desempenho de ações comportamentais.
Mesmo os pensamentos mais recônditos e aparentemente inacessíveis têm sido objeto de estudo utilizando métodos neurofuncionais: crenças morais, intenções de ação, preferências, autoconsciência, divagações livres. Em suma, a consciência humana começa ter decifrada a sua base neural.
Nos tribunais, são duas as áreas de interesse. A primeira aborda a questão da responsabilidade criminal, a possível previsão de um comportamento criminoso e opções de tratamento, prevenção ou punição. A segunda focaliza mais fortemente a utilização de ferramentas neurotecnológicas no processo de tomada de decisões judiciais.
No primeiro caso, a responsabilidade criminal resulta em uma punição, e a punição só pode ser imposta a alguém que cometeu um crime consciente de sua ação e dos contornos morais dela. O mesmo se aplica a uma simples mentira, ressalvadas as devidas proporções.
Será possível ajudar a justiça a definir com precisão se um cidadão é imputável ou inimputável, ou seja, se cometeu um crime com plena consciência do que se tratava, ou se o fez totalmente incapaz de julgar os seus próprios atos? Além disso, será possível determinar se um indivíduo imputável diz a verdade ou a esconde?
O cérebro que mente
Há algumas décadas apareceram no mercado tecnologias e empresas que comercializam ’detectores de mentira’ e reivindicam seu uso para dirimir dúvidas sobre crimes no âmbito policial e judicial. As primeiras tecnologias eram chamadas poligráficas, porque se baseavam no registro em papel, em gráficos, de parâmetros funcionais do corpo, correlatos de grandes emoções.
Quando somos invadidos por forte emoção, o coração bate mais rápido, a respiração fica ofegante, a pele se torna úmida de suor e todos esses fenômenos podem ser medidos. Desse modo, a proposta dessas empresas era testar a ’culpa‘ de um acusado registrando esses parâmetros durante um interrogatório.
De fato, vários trabalhos científicos atestam que, ao sentir uma emoção qualquer, um grupo de pessoas apresenta alterações da frequência cardíaca e respiratória, bem como um aumento da condutividade elétrica da pele devido à umidade do suor. O problema é determinar que emoção é essa. Ou seja, não se pode ter certeza se um acusado sua mais porque se admite culpado frente a um interrogatório, ou porque fica ansioso e impactado pela pressão a que está sendo submetido, mesmo sendo inocente das acusações.
A poligrafia, desse modo, não teve sucesso comprovado como ’detector de mentiras‘, embora continue sendo um instrumento importante para a pesquisa. Recentemente, o lugar foi preenchido pela neuroimagem de ressonância magnética funcional (RMf). Apareceram inúmeros trabalhos relatando a ativação de um conjunto definido de áreas cerebrais em diversas situações de conteúdo emocional.
Imagens da mentira
Um desses trabalhos apareceu recentemente na revista da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos (PNAS), assinado por dois pesquisadores do Departamento de Psicologia da Universidade Harvard, nos Estados Unidos: Joshua Greene e Joseph Paxton.
Os dois recrutaram um grupo de voluntários para participar de um estudo sobre a ’capacidade premonitória‘ que certas pessoas teriam, investigando o seu desempenho em prever simplesmente se uma moeda jogada para cima cairia como cara ou como coroa. Os voluntários ganhariam uma recompensa financeira a cada acerto ou a perderiam nos casos de erro. Só que o objetivo na verdade não era esse, mas sim a verificação de quais desses indivíduos mentiriam sobre os resultados do teste, e quais diriam a verdade.
No grupo, alguns diziam a verdade e eram classificados como “honestos”, enquanto outros, malandramente, declaravam ter acertado o lado da moeda mais vezes do que de fato haviam acertado, pois isso revertia em maior recompensa financeira. Eram classificados como “desonestos” no estudo. Os pesquisadores, durante o teste, mediam o tempo de reação dos sujeitos em apertar o botão de cara ou de coroa, e registravam o grau de ativação neural das regiões do seu cérebro em um equipamento de ressonância magnética.
Os resultados da pesquisa indicaram que o grupo de regiões ativadas nos desonestos era diferente daquelas ativadas nos honestos. Como os tempos de reação de ambos os grupos eram semelhantes nas situações em que os honestos e os desonestos tinham igual oportunidade de agir honesta ou desonestamente, os pesquisadores concluíram que esse seria um traço natural de “caráter”, não envolvendo um controle ativo da tentação.
Cuidado com as conclusões
Já existem inúmeros trabalhos cientificamente controlados como o dos pesquisadores de Harvard. A tal ponto que já aparecem empresas propondo-se a comercializar ’testes da verdade’ para advogados ou seus clientes envolvidos em pendências judiciais. O leitor interessado pode visitar a página de algumas delas na internet: http://www.noliemri.com e http://www.cephoscorp.com.
No entanto, é preciso cautela na interpretação dos resultados. Em primeiro lugar, a maioria dos estudos baseia suas conclusões em avaliações estatísticas de um grupo de indivíduos, sendo temerário concluir algo seguro quando se trata de um único indivíduo, particularmente se a conclusão final envolver o seu destino: prisão ou liberdade.
Além disso, as mesmas regiões cerebrais ativadas em um contexto (mentira/verdade, por exemplo) podem ser também ativadas em outro contexto (ansiedade/tranquilidade, por exemplo). Também não há garantia de que as situações experimentais altamente controladas, no laboratório, reproduzam exatamente as situações mutantes e dinâmicas da vida real no contexto de um crime, sua investigação e seu julgamento.
E mais: o cérebro dos indivíduos é diferente e muda rapidamente à medida que o tempo passa, em particular no que se refere aos seus padrões de ativação funcional. Essa propriedade recebe o nome de neuroplasticidade. Ninguém pode garantir que o seu padrão de ativação cerebral em uma situação de vida seja exatamente igual à ativação de uma outra pessoa em situação semelhante (inclusive porque as situações nunca são exatamente iguais).
E ninguém pode estar certo de que o seu cérebro, ativado hoje, terá igual padrão de ativação se for ativado passados vários meses – é o que ocorre entre o momento de um crime e o momento em que o suspeito terá o seu cérebro testado.
Conclui-se que ainda estamos um pouco longe de poder utilizar com segurança as ferramentas das neurotecnologias para tomar decisões judiciais.
E nem falamos de um pequeno detalhe muitas vezes desconsiderado, mas de consideráveis implicações éticas: o risco, para as liberdades individuais, de darmos acesso a terceiros ao que é mais particular e inviolável de nossas vidas – os nossos pensamentos.
Roberto Lent
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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