Um apaiari ou oscar ( Astronotus ocellatus ), peixe ciclídeo capaz de mudar de cor, era o espécime dominante no aquário do colunista, até a chegada de um jacundá ( Crenicichla marmorata ). Foto: Jón Helgi Jónsson.
Durante muitos anos tive em casa um grande aquário habitado por diversas espécies da família dos ciclídeos, considerados os mais inteligentes peixes de água doce e cujos membros mais conhecidos são os acarás-bandeira e acarás-disco.
Grande parte da fisiologia e do comportamento dos moradores de meu aquário podia ser facilmente deduzida a partir da sua coloração. Havia entre esses animais uma hierarquia: o peixe dominante era um grande apaiari ou oscar ( Astronotus ocellatus ) que sempre tinha o privilégio de se alimentar primeiro. Todos os outros eram mais tímidos e, como sinal de subserviência, possuíam cores mais opacas que a do apaiari dominante. Essa situação modificou-se após a introdução no aquário de um jacundá ( Crenicichla marmorata ), um ciclídeo muito agressivo que, rapidamente, passou a dominar os outros peixes e a exibir mudanças instantâneas de coloração como prova de superioridade.
Alguns animais apresentam a fascinante capacidade de modificar rapidamente a cor do corpo em resposta a sinais ambientais e comportamentais e ao estresse. O conjunto de cores que eles exibem forma o que a zoóloga Margareta Wallin, professora da Universidade de Gotemburgo (Suécia), chamou de “a paleta da natureza”. Esse fenômeno, denominado coloração fisiológica, é encontrado em alguns vertebrados pecilotérmicos (peixes, répteis e anfíbios) e entre invertebrados como camarões e lagostas (crustáceos), lulas e polvos (moluscos cefalópodes).
Nesses invertebrados, as mudanças fisiológicas de coloração são controladas por músculos e terminações nervosas que atuam sobre órgãos multicelulares complexos. Os vertebrados, por sua vez, empregam mecanismos de sinalização celular para obterem efeito similar. Essas mudanças de cor são desencadeadas por fatores ambientais (temperatura, pH e salinidade da água, período do dia, luminosidade etc.), fisiológicos (doenças, estresse e estado nutricional) e comportamentais (período reprodutivo e posição hierárquica). Elas estão associadas a sinais de ação lenta enviados por hormônios (como a melatonina e as melanocortinas) ou de ação rápida produzidos por neurotransmissores ou por moléculas de atuação local.
Células especializadas
A ocorrência de mudanças fisiológicas de coloração está relacionada com a presença na epiderme ou na derme desses animais de células especializadas conhecidas como cromatóforos. Essas células possuem um grande número de prolongamentos citoplasmáticos e apresentam em seu interior grânulos formados por pigmentos de diversas cores (biocromos) compostos por substâncias como a pteridina (tons amarelos), carotenóides (vermelhos) e purinas (brancos). Também são encontrados pigmentos (esquemocromos) que interferem na luz incidente produzindo cores iridescentes.
A seqüência de imagens mostra o deslocamento de grânulos de melanina em melanócitos, da periferia celular (no alto à esquerda) em direção a região perinuclear (embaixo à direita). Esse deslocamento é responsável por uma alteração na coloração do animal (no caso, um peixe-zebra).
Os mamíferos e as aves perderam a maior parte desses pigmentos durante sua evolução e possuem em sua pele somente um tipo de cromatóforo conhecido como melanócito ou melanóforo. Essas células apresentam apenas grânulos nas cores preta, marrom ou amarelada, devido à presença dos pigmentos melanina e feomelanina sintetizados a partir do aminoácido tirosina. A coloração dos melanócitos e melanóforos deve-se a uma regulação espacial sutil no tipo de pigmentos produzidos por essas células. Outras cores presentes, por exemplo, nas penas das aves devem-se à deposição extracelular de outros pigmentos, como porfirinas, cobre, carotenóides e purinas.
Em peixes e em outros vertebrados capazes de mudar de cor, os padrões de coloração resultam do tipo de pigmento produzido e de interações entre cromatóforos vizinhos. Novas células podem também ser geradas em resposta a estímulos persistentes.
As rápidas mudanças de coloração nesses grupos de animais devem-se ao deslocamento dos grânulos de pigmentos para a periferia do citoplasma ou de sua agregação na região vizinha do núcleo celular (perinuclear). Esse transporte é realizado por proteínas denominadas “motores moleculares”, que trafegam sobre uma rede de filamentos protéicos dispersos em seu citoplasma dos cromatóforos e conhecida como citoesqueleto celular. Pigmentos deslocados para os prolongamentos citoplasmáticos geram colorações mais intensas, enquanto as movimentações para a região perinuclear criam cores mais diluídas.
Camuflagem
O camaleão (acima um animal da espécie Chamaeleo calyptratus ) muda de cor para se camuflar no ambiente onde vive.
Algumas espécies utilizam a capacidade de mudar de cor para se camuflar no ambiente em que vivem, evitando assim predadores ou facilitando a caça de presas. Os animais mais conhecidos por utilizar essa estratégia são os polvos e camaleões, mas o mecanismo também é de uso comum entre peixes de recifes de coral e alguns anfíbios e répteis de florestas tropicais.
Os processos de coloração fisiológica também são utilizados como uma forma de seleção sexual – as fêmeas escolhem os machos que apresentam as características “mais promissoras” de forma a garantir seu sucesso reprodutivo. Os espécimes que apresentam as cores mais vistosas são dominantes em relação aos outros machos e têm preferência para copular com as fêmeas presentes nas proximidades.
Os cromatóforos têm sido bastante utilizados atualmente como modelos experimentais para se estudar a ocorrência de doenças humanas ligadas à pigmentação, como o melanoma e o albinismo. Além disso, o estudo dos mecanismos de atuação dos hormônios envolvidos com a movimentação de pigmentos em cromatóforos é essencial para que também compreendamos outros processos relacionados com a atuação de nosso relógio biológico e controlados por essas substâncias, como os ciclos de vigília e sono e o controle do apetite. Pode ser, portanto, que os mecanismos envolvidos com essa “linguagem” possam gerar no futuro pistas para entendermos um pouco mais sobre nossa biologia.
Jerry Carvalho Borges
Colunista da CH On-line
15/12/2006
SUGESTÕES PARA LEITURA
Artigos relacionados a esta coluna no blog Aventuras da Ciência ( http://aventurasdaciencia.blogspot.com ): “Laboratórios da evolução” e “Seleção natural: quando os mais aptos vencem”.
Wallin, M. 2002. Nature’s pallete. How animals, including humans produce colours. Bioscience Explained , 1(2)
Gray, S.M., McKinnon, J.S. 2006. Linking color polymorphism maintenance and speciation. Trends Ecol. Evol ., Oct 18, 2006.
Nascimento A.A., Roland J.T., Gelfand, V.I .2003. Pigment cells: a model for the study of organelle transport. Annu. Rev. Cell Dev. Biol. 19:469–91.