A pequena notável

Ela é muito pequena, apresenta-se na escala nanométrica (o nanômetro é a bilionésima parte do metro). Mas o que tem de pequena, tem de poderosa. Está no coração de vários equipamentos e dispositivos eletrônicos, valeu o Nobel de Física de 1973 ao seu descobridor e promete abrir as portas para o mundo da computação quântica. Estamos falando de um dispositivo conhecido como junção Josephson (JJ).

O efeito túnel em supercondutores, geralmente conhecido como efeito Josephson, em homenagem ao seu descobridor, o físico britânico Brian David Josephson (1940-), foi descoberto em 1962. O dispositivo que permite sua realização é conhecido como junção Josephson.

Para apreciarmos em maior profundidade o efeito Josephson, que está por trás desses dispositivos, precisamos recorrer ao conceito de coerência de fase. Não é possível explicá-lo em detalhes aqui, mas podemos dizer que esse efeito é análogo à sincronia de duas pessoas que caminham juntas, com passos idênticos, de modo que a posição de cada pé de um caminhante corresponda ao respectivo pé do outro. Nesse caso, dizemos que as passadas são coerentes, ou que existe uma coerência de fase entre as duas caminhadas.

A observação de qualquer fenômeno microscópico tem a ver com coerência de fase – ora em escala espacial, ora em escala temporal. Para o primeiro caso definimos o comprimento de coerência, enquanto para o segundo temos o tempo de coerência. Os fenômenos quânticos costumam apresentar tempo e comprimento de coerência inferiores, respectivamente, ao nanossegundo e ao nanômetro. No caso de dispositivos fabricados com a junção Josephson, no entanto, isso pode ocorrer em escalas macroscópicas.

A observação em escala macroscópica de um fenômeno quântico é o aspecto mais fascinante dessa pequena notável. É quase inimaginável que um par de Cooper possa manter-se junto (coerente) ao atravessar, por efeito túnel, uma camada de material isolante com espessura da ordem de alguns nanômetros (pares de Cooper, como mostramos na coluna de maio , são partículas envolvidas no fenômeno da supercondutividade). A coisa fica mais surpreendente ainda quando se constata que milhares de pares de Cooper fazem isso ao mesmo tempo, permitindo o surgimento de uma corrente elétrica mensurável.

Detecção de campos magnéticos
A primeira aplicação fabricada com junções Josephson, conhecida como dispositivo de interferência quântica (ou Squid, na sigla em inglês), vem sendo usada desde os anos 1970 como detector de campos magnéticos com alta sensibilidade. Trata-se basicamente de um anel supercondutor, contendo duas junções Josephson. Esses dispositivos são utilizados para a fabricação de magnetômetros instalados em milhares de laboratórios de pesquisa ao redor do mundo.

Protótipo do equipamento para obtenção de magnetocardiograma fetal, que mede o campo magnético gerado pelo coração de fetos (foto: Universidade de Twente).

Na área médica, vem crescendo a utilização desses dispositivos para a medição de campos magnéticos no estômago, nos músculos, no encéfalo e no coração. A alta sensibilidade desse dispositivo permitiu que pesquisadores da Universidade de Twente, na Holanda, desenvolvessem um protótipo para a obtenção de magnetocardiograma fetal – capaz de detectar o campo magnético gerado no diminuto coração de fetos. Essa técnica, conhecida pelo acrônimo fMCG, vem despertando muito interesse na comunidade médica internacional.

O alvoroço atual em torno da JJ, no entanto, é motivado pela expectativa de que ela possa ser usada na fabricação de computadores quânticos. Os fundamentos e as realizações experimentais obtidas nessa área são muito complexos para serem descritos aqui, mas é possível termos uma idéia de como a coisa é feita (para maior aprofundamento, uma boa e detalhada descrição da computação quântica foi apresentada pelo professor Amir Caldeira na CH de abril deste ano).

Nos computadores atuais, fabricados com dispositivos semicondutores, toda a lógica computacional é baseada em uma estrutura binária resultante, em última instância, da existência ou não de corrente elétrica na saída de diodos, transistores e circuitos construídos com esses dispositivos.

Bits quânticos
No caso de computadores quânticos a história também começa assim. Os bits , aqui chamados de  q-bits ou qubits (ou bits quânticos), são também associados à presença ou ausência de uma propriedade física mensurável. Por exemplo, podemos associar o tunelamento em uma JJ ao bit “1”, enquanto o bit “0” será associado à falta de tunelamento (leia mais sobre essa propriedade na coluna de julho ).

Diferentemente dos dispositivos semicondutores, no entanto, para os quais só existem os estados “0” e “1”, um sistema quântico admite uma infinidade de estados, resultantes da superposição dos “estados puros”. É essa multiplicidade de estados que possibilitará computação paralela com um único processador quântico. Esse modo de realização da computação quântica é conhecido como modo de controle de carga.

Outra maneira de realizar a computação quântica é por meio do controle de fluxo magnético em um Squid, produzido por um campo magnético externo. Dependendo do valor do fluxo, uma corrente circula no sentido horário ou anti-horário. O q-bit “0” é associado à corrente em determinado sentido, enquanto o q-bit “1” será associado à corrente no sentido oposto.

Seja qual for o modo de realização, sua exeqüibilidade vai depender do tempo de coerência de fase, ou tempo de coerência quântica. Esse é o tempo de existência dos q-bits , que deve ser longo o bastante para permitir a realização de várias operações. O problema é que os dispositivos quânticos precisam ser conectados à eletrônica convencional, que introduz ruídos destruidores da coerência quântica.

Desafios

Circuito integrado ( chip ) que abriga os 16 bits quânticos do processador ‘Orion’, apresentado recentemente pela empresa canadense D-Wave.

Desenvolver instrumentos e métodos para a observação dos estados quânticos coerentes e eliminar os ruídos produzidos pela eletrônica periférica são os principais desafios para a industrialização do computador quântico. A empresa canadense D-Wave afirmou ter obtido um protótipo de 16 q-bits

em fevereiro deste ano – uma notícia recebida com ceticismo por alguns especialistas. Por enquanto, os resultados mais animadores continuam restritos aos laboratórios de pesquisa, e são bem recentes.

 

Um dos primeiros e mais importantes trabalhos nessa área foi publicado na Nature

em abril de 1999, por pesquisadores da empresa japonesa NEC. A equipe conseguiu controlar estados quânticos coerentes por meio do modo de controle de carga em uma junção Josephson, durante aproximadamente 2 nanossegundos (a bilionésima parte do segundo). Desde então, pesquisadores de diferentes universidades e empresas vêm enfrentando dificuldades para ultrapassar a barreira entre o laboratório e a fábrica, e tempos de coerência na escala de microssegundos (a milionésima parte do segundo) já foram observados.

 

Até onde sabemos, não há contribuição brasileira sistemática na área de dispositivos para computação quântica, mas vários dos nossos pesquisadores, sobretudo aqueles vinculados ao Instituto do Milênio Informação Quântica , têm contribuído com importantes estudos básicos. Sobre junção Josephson temos muitas publicações interessantes. Veja aqui

um mapa que mostra de onde vêm os principais trabalhos publicados por pesquisadores brasileiros sobre junção Josephson.

Carlos Alberto dos Santos

Núcleo de Educação a Distância

Universidade Estadual do Rio Grande do Sul

24/08/2007