Uma notícia alvissareira para os estudantes das áreas de humanas vem circulando à boca pequena nos corredores das universidades do país: por conta de uma decisão judicial da Justiça Federal do Ceará do dia 19 de dezembro passado, parece que as humanidades poderão ser incluídas no Ciência sem Fronteiras (CsF) – pelo menos na fase atual do programa –, mesmo contra a vontade do governo.
Explico: desde que foi criado, em meados de 2011, o ambicioso programa para estimular o avanço da ciência nacional dirigiu-se basicamente às áreas de ciências exatas e biológicas, excluindo a área de ciências humanas.
No discurso de lançamento do CsF, a presidenta Dilma afirmou que “precisamos dos engenheiros para fazer projetos, infraestrutura e pesquisa”. Quanto a isso, não há dúvidas. Mas o fato de precisarmos de engenheiros deve mesmo excluir as humanidades? Não parece ser o que pensam os próprios estudantes. Utilizando-se de brechas no edital, vários conseguiram se beneficiar do programa, concorrendo na categoria ‘Indústria Criativa’.
Agora, na mais recente chamada do CsF, mais de 20 cursos, a maioria deles da área de humanas, foram especificamente excluídos na retificação do edital, e foi isto que o juiz substituto da 3ª Vara da Justiça Federal do Ceará Kepler Gomes Ribeiro considerou ilegal, já que o governo teria mudado de maneira inesperada as regras do programa.
Seja como for, o que importa aqui é que, apesar dos vários protestos contra a exclusão dos estudantes de humanas do CsF, para o governo, ao que parece, as humanidades não só não são ciência, como não são importantes para o desenvolvimento científico nacional. Em resposta à decisão judicial, o Ministério da Educação (MEC) considerou a decisão como “interferência administrativa em política pública, cujos critérios são de decisão do poder executivo”.
Experiência ímpar e útil
Enquanto aguardamos a apelação do MEC, faço coro às reclamações. Por todos os motivos, a atitude do governo me parece incompreensível, tanto por não incluir as humanidades entre as chamadas ciências, ainda que em sentido lato, quanto por não considerá-las, assim como outros campos do conhecimento também excluídos, estratégicas para o desenvolvimento do país.
No caso específico da área de pesquisa em ciências humanas – como nas disciplinas de história, sociologia e antropologia –, para além dos benefícios óbvios que a oportunidade de conhecer universidades e bibliotecas mundo afora proporciona, a própria experiência de viajar é fundamental, tanto para que possamos nos distanciar da realidade e nos fazer ver o nosso mundo de outra forma, quanto para sermos capazes de nos surpreender com novidades inusitadas.
Pelo menos, foi assim comigo.
Ao chegar à Universidade de Maryland, nos Estados Unidos, com uma bolsa do Programa de Doutorado com Estágio no Exterior (PDEE) da Capes, para estudar com dois dos maiores especialistas em história da escravidão e do pós-emancipação dos Estados Unidos – Ira Berlin e Leslie Rowland –, esperava encontrar, nas aulas e na biblioteca, a confirmação da minha hipótese de que, entre as várias diferenças entre a escravidão no Brasil e nos Estados Unidos, estava o fato de apenas no Brasil escravos poderem processar seus senhores quando consideravam que tinham legítimo direito à liberdade.
Não podia estar mais errada. Bastou um mês de aulas e de mergulho na biblioteca para entender que as ações de liberdade – como eram chamados esses processos – existiram onde houve escravidão nas Américas e que, não importam quais fossem as diferenças entre as formas assumidas pela escravidão nos vários países das Américas, sempre era possível, com maior ou menor dificuldade, que escravos processassem seus senhores na Justiça. Não só existiram ações de liberdade no Brasil e nos Estados Unidos, como também no México, Peru, Argentina, Canadá, Cuba e tantos outros países.
A forma como essa descoberta impactou a pesquisa que na época eu fazia não vem tanto ao caso. O importante, aqui, é que em nenhuma biblioteca do Brasil eu teria acesso à bibliografia que me fez mudar totalmente os rumos do meu percurso acadêmico até então. Mais do que isso. Aquela primeira experiência nos Estados Unidos criou raízes acadêmicas tão profundas que agora escrevo esta coluna do aeroporto, a caminho de uma curta temporada dando aulas na Universidade de Michigan.
Aliás, diga-se de passagem, essas aulas fazem parte do acordo de cooperação estabelecido entre a Universidade de Michigan e a universidade onde trabalho – a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio) –, fruto justamente dos contatos acadêmicos estabelecidos há tempos entre os programas de pós-graduação em história das duas universidades.
Este é um humilde exemplo para quem acha que as humanidades não contribuem para o desenvolvimento da ciência no Brasil: as atividades conjuntas entre as duas universidades foram iniciadas na área de história, mas agora geraram um acordo de cooperação internacional que beneficia outras áreas ditas mais nobres, como medicina e biologia.
“Para formar a base de pensamento do país”?
Nesses tempos de estadia nos Estados Unidos, aprendi muitas coisas que nossa cultura de Sessão da Tarde e meu inglês de cursinho não me permitiam vislumbrar. Aprendi que lá festa tem hora para começar e para acabar; que as cozinhas e banheiros não têm ralo e que, portanto, não dá para jogar balde de água no chão para fazer faxina; que qualquer comentário sobre uma apresentação em congresso começa com “fantastic” ou “fascinating”.
E muitas outras coisas que a presidenta Dilma certamente consideraria inúteis para o desenvolvimento da ciência nacional, mas que são parte da vivência que acompanha o amadurecimento acadêmico.
No mesmo discurso que Dilma disse que o país precisa de engenheiros formados no exterior, ela enfatizou que o programa Ciência sem Fronteiras também era fundamental para que “seja possível fazer inovação de forma generalizada” no Brasil, e que, com ele, “vamos formar a base de pensamento do país”. Que pensamento é este que não leva em consideração as ciências humanas?
Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro