Como em tantos outros temas centrais para a modernidade, o filósofo francês Michel Foucault foi pioneiro na pesquisa sobre as relações entre os fenômenos da vida humana e a ordenação jurídica. Chegou mesmo a formular novas categorias analíticas, como a de biopoder, visando chamar atenção para a forma como a nova estruturação do poder, característica de nossos tempos, dependia do incentivo prático e retórico às capacidades e modos de manifestação da corporalidade humana.
Todas as sociedades humanas dispõem de normas relativas ao uso adequado das diferentes funções e capacidades da dimensão física das pessoas, ou seja, de seu corpo. As regras de parentesco tendem a congregar o grosso dessas normas de comportamento, definindo os limites do incesto, do infanticídio, do adultério, das orientações ou posições sexuais; tudo integrado numa visão de mundo solidária às representações sobre a natureza e a sobrenatureza.
Nas sociedades com estruturas jurídico-políticas formalmente constituídas, essa relação tende a se tornar sempre mais complexa, acolhendo ou reprimindo tendências que se entrechocam dentro de grupos mais diferenciados e conflitantes.
A sociedade brasileira acompanha esse processo de maneira intensa e conturbada, em função da enorme variedade das formações culturais que a compõem e da dinâmica acelerada de sua transformação socioeconômica.
Uma característica importante é a da complexidade do campo religioso nacional, com uma continuada importância da Igreja Católica e de seus preceitos morais e uma crescente interferência das novas configurações emergentes no mundo evangélico.
A ordenação jurídica ocidental moderna, o chamado “império da lei”, é considerada formalmente autônoma em relação aos valores religiosos, mas, na medida em que são disseminados na população, eles não podem deixar de ser levados em conta ou de reverberar – mesmo a contragosto – na legislação e na jurisprudência.
Controvérsias morais
Presidi, durante o recente 35º Encontro da Anpocs – Associação Nacional de Programas de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais –, em Caxambu, uma mesa que se intitulava ‘Religião, direitos humanos e espaço público: reflexões sobre temas morais controversos‘.
As três comunicações versaram sobre a homossexualidade, a reprodução assistida (ou artificial) e a ortotanásia (ou seja, a permissão da morte em situações terminais ou incuráveis, com redução das intervenções médicas e medicamentosas).
Acompanhei também o Grupo de Trabalho ‘Sexualidade e gênero: sociabilidade, erotismo e política’, em que mais de 15 fascinantes trabalhos foram apresentados.
A mesa buscava apresentar os últimos avanços na pesquisa de um grupo de antropólogos que já havia publicado, sob minha coordenação, em 2008, uma coletânea de artigos intitulada Valores religiosos e legislação no Brasil (ver ‘Sugestões para leitura). Naquela ocasião, além dos três temas tratados em Caxambu, também se havia abordado as controvérsias jurídicas e religiosas a respeito do aborto e da política de saúde relativa ao HIV/Aids.
O que ressalta em todos esses casos é a extrema necessidade das regulamentações jurídicas, demandadas pelos grupos que se veem ameaçados pela posição prática, moral ou religiosa oposta. Ou, em muitos casos, a demanda de alteração da legislação, pelos mesmos motivos e pelos deslizamentos das posições públicas a respeito.
Esse processo já tinha sido muito bem descrito, para o caso do Brasil, pelo antropólogo brasileiro Sergio Carrara, a respeito das lutas contra a sífilis (envolvendo a prostituição) e pela também antropóloga brasileira Fabíola Rohden, a respeito da regulamentação do aborto e da contracepção – ambos no começo do século 20.
Vias oblíquas
Uma nova era jurídica para o Brasil abriu-se com a promulgação da Constituição de 1988, que acolheu novas modalidades de relação entre a população e seus legisladores (como a criação do Ministério Público) e que consolidou o Estado de Direito subsequente à ditadura militar.
Os anos 1980 acolheram também grandes modificações no mapa moral da nação, com a consolidação, por um lado, dos valores laicos e liberais que a contracultura dos anos 1960 ajudara a divulgar por todo o globo e, por outro, a concomitante afirmação de novas versões da moralidade cristã, sustentadas pelas diversas denominações pentecostais.
Um novo fenômeno atravessou a prática dos parlamentos brasileiros: a constituição de bancadas explicitamente religiosas, defensoras dos controles morais estritos preconizados por suas igrejas.
O acolhimento jurídico do divórcio em 1977, após longas lutas, tinha parecido prenunciar um período de ampla liberalização da legislação sobre questões morais. No entanto – e talvez até mesmo em reação àquela novidade desafiadora –, um período de conflitos muito intensos tem se estendido desde então.
Os temas acima mencionados concentram o principal das lutas jurídicas e legislativas em curso. Mas é provavelmente o núcleo da homossexualidade que concentra o mais vivo antagonismo.
Agora mesmo, o projeto de lei da Câmara 122 de 2006, popularmente conhecido como PL 122, que se propõe criminalizar a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero, tramita acidentadamente no Senado, acossado por constantes manifestações públicas contrárias ou favoráveis.
A formalização das negociações morais em regulamentações jurídicas é um fenômeno inevitável, dado o alto grau de conflito característico das sociedades modernas. E ela pode ser invocada tanto pelas posições mais liberais, como no caso do PL 122, como pelas posições mais restritivas, como no caso da proibição do aborto.
Algumas dessas iniciativas acabam sendo resolvidas por vias oblíquas, administrativas, como a consolidação de uma política de saúde afirmativa em relação ao HIV/Aids, ou judiciárias, como o reconhecimento do chamado ‘casamento gay’.
Outras, como a do aborto, levantam objeções mais amplas e complexas do que a da mera oposição entre laicidade e religião, já que põem em cena o sacrossanto valor da noção de ‘vida’ na cultura moderna (em diversos sentidos, aliás).
Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Carrara, Sérgio. Tributo a Vênus: a luta contra a sífilis no Brasil, da passagem do século aos anos 40. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 1996.
Duarte, Luiz F. D.; Gomes, Edlaine de C.; Menezes, Rachel A.; Natividade, Marcelo (orgs.). Valores Religiosos e Legislação no Brasil. A tramitação de projetos de lei sobre temas morais controversos. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2008.
Foucault, Michel. ‘A política da saúde no Século XVIII’. In Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979.
Luna, Naara. Provetas e Clones: uma antropologia das novas tecnologias reprodutivas. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2007.
Rohden, Fabiola. A arte de enganar a natureza: contracepção, aborto e infanticídio no início do século XX. Rio de Janeiro: Editora Fiocruz, 2003.