Acidentes acontecem…

Un coup de dés jamais n’abolira le hasard
[Um lance de dados jamais abolirá o acaso]
Stephane Mallarmé, poeta francês ( 1842-1898)

Os dois trilobitas de estimação do autor, Trilô (A – gênero Phacops ) e Bita (B – gênero Eccaparadoxides ).

Tenho em casa um casal de trilobitas de estimação, Trilô (do gênero Phacops ) e Bita (do gênero Eccaparadoxides , creio). Eles são excelentes animais domésticos: silenciosos, obedientes, limpos. Comem praticamente nada e não precisam ser levados para passear. Além disso, servem como uma constante lembrança da minha mortalidade ( memento mori ) e são um testemunho da impermanência das coisas.

Por falar em impermanência, os trilobitas resistiram bravamente a ela, povoando os mares paleozóicos por quase 300 milhões de anos. Eles viveram desde o Baixo Cambriano (540 milhões de anos atrás) até 250 milhões de anos atrás, quando desapareceram na Grande Extinção Permiana, conjuntamente com mais de 90% das espécies de animais na terra.

Foram os padrões de estase evolucionária (*) dos trilobitas do gênero Phacops (parentes de Trilô) e sua alternância com períodos de rápida mudança que levaram o paleontólogo americano Niles Eldredge (1943-) a desenvolver a teoria do equilíbrio pontuado (*), em parceria com o grande evolucionista Stephen Jay Gould (1941-2002), também americano. É este último quem será o foco da coluna deste mês.

Stephen Jay Gould foi um cientista estelar e um escritor estelar. Seus artigos mensais, intitulados “This View of Life” (‘Esta visão da vida’), publicados ininterruptamente de 1974 a 2001 na revista Natural History e posteriormente compilados em inúmeros livros, foram um exemplo de clareza, elegância e erudição. Considero-os o epítome do ensaísmo científico, motivos de inspiração para esta coluna e inveja para seu autor.

Além de participar na gênese do equilíbrio pontuado, Gould foi responsável por vários outros conceitos seminais em teoria evolucionária, como o de exaptação (*). Mas eu gostaria especialmente de ressaltar aqui suas idéias sobre papel da contingência (ou eventualidade, acaso) em evolução. Gould abordou este tema de maneira magistral em seu fantástico testamento científico – um volume de 1400 páginas intitulado The Structure of Evolutionary Theory (‘A estrutura da teoria evolucionária’), publicado em 2002, ano de sua morte.

Gould não originou o conceito de contingência histórica do processo evolucionário, mas certamente foi um de seus mais importantes entusiastas e divulgadores. O exemplo que ele especialmente usou e discutiu foi o de uma outra grande extinção, que ocorreu há 65 milhões de anos, entre o Cretáceo e o Terciário (transição K-T) e que ocasionou o desaparecimento dos dinossauros.

Choque e extermínio

Concepção artística da Nasa retrata o choque hipotético de um asteróide com o planeta Terra.

Acredita-se que o extermínio tenha sido causado pelas conseqüências do choque de um enorme asteróide (possivelmente um cometa em pedaços) contra a Terra. Quando esta idéia foi proposta em 1980 pelo americano Luis Alvarez (1911-1988, ganhador do Nobel de Física em 1968) e por seu filho Walter, ela foi recebida com enorme ceticismo. Entretanto, a força irrefutável das evidências físicas levaram à aceitação praticamente geral da proposta deles.

Entre os indícios mais convincentes em favor dessa hipótese, estão o achado de enriquecimento de irídio, de peculiaridades na estrutura do quartzo e de anomalias nas frações isotópicas do cromo nas camadas estratigráficas correspondentes à fronteira K-T. A “cereja em cima do sundae ”, porém, foi a descoberta de várias crateras datando daquela época, mais notadamente a de Chicxulub, na Península do Iucatán (México), com 180 km de diâmetro. Estas grandes crateras representam evidências visuais do impacto do cometa despedaçado, pegadas do facínora na cena do crime.

Vale a pena citar uma passagem de Gould no The Structure of Evolutionary Theory sobre o impacto K-T para termos um sabor de seu estilo e de seu raciocínio (lamento que a minha tradução não tenha a elegância do original em inglês):

“Dinossauros e mamíferos compartilharam a Terra por 130 milhões de anos, o dobro do período subseqüente de sucesso dos mamíferos que levou à emergência do Homo sapiens entre outras 4.000 outras espécies vivas da nossa classe Mammalia. […] podemos conjecturar que, na ausência deste acidente cósmico, os dinossauros ainda estariam dominando os hábitats de grandes animais terrestres e os mamíferos ainda seriam criaturas das dimensões de ratos, vivendo nos interstícios ecológicos do mundo reptiliano. Neste episódio, mais vitalmente pessoal que qualquer outro, deveríamos literalmente agradecer à nossa estrela da sorte […] que certas marcas da nossa incompetência ancestral – persistência de um pequeno tamanho no mundo dos dinossauros, por exemplo – subitamente transformaram-se em vantagens cruciais e fortuitas na vigência das novas regras do impacto K-T, enquanto a fonte prévia de triunfo para os dinossauros [seu grande tamanho] levou à tragédia deles nas novas regras”.

Acaso e necessidade
Demócrito, filósofo grego da Antiguidade, dizia que “tudo no universo é o fruto do acaso e da necessidade”. A questão que temos discutido nas três últimas colunas é a importância relativa do acaso e da necessidade no processo evolucionário. Tratamos, primeiro, do acaso operando sobre genes seletivamente neutros na deriva genética . Agora, vemos o mesmo acaso agindo através de acidentes cósmicos e causando grandes extinções em massa, abrindo assim novos nichos evolucionários que jamais teriam ocorrido “por necessidade”.

O evolucionista Stephen Jay Gould (1941-2002).

Gould empregou várias vezes a metáfora de que a evolução era igual a um filme que, se fosse rebobinado e passado de novo, teria cada vez um final diferente. Há algumas implicações interessantes desta visão. Todas as estórias de ficção científica mostram formas alienígenas de vida com pelo menos um plano corporal similar ao nosso. Entretanto, como a história evolucionária é contingente, poderíamos esperar que, se outros seres vivos existirem no universo, eles serão completamente diferentes das formas de vida existentes na Terra.

Como discutimos na coluna do mês passado , a visão laplaceana determinística do universo (o paradigma causal) considera inferências probabilísticas como manifestações epistemológicas de nossas limitações mentais. Assim, é comum que biólogos usem a contingência como um domínio residual, de segunda classe, para detalhes que não podem ser explicados por leis gerais. Gould discordava veementemente disso e argumentava que a aleatoriedade e contingência não deviam ser vistas como evidências de limitações de nosso conhecimento, mas como propriedades intrínsecas, ontológicas e fascinantes da própria natureza.


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
14/04/2006