O criacionismo, do qual tanto se fala hoje em dia, atribui a Deus a criação de todas as coisas, dos seres humanos em especial. Trata-se de uma tese baseada na fé, digna de respeito como qualquer crença, mas que se choca com a abordagem científica da natureza, especialmente com a teoria da evolução estabelecida tão firmemente por Charles Darwin (1809-1882), o naturalista inglês que percorreu o mundo – inclusive o Brasil.
Parafraseando o Marquês de Laplace (1749-1827), eminente físico francês: Deus não é uma hipótese necessária para a teoria da evolução. Conta-se que uma frase semelhante a essa foi dita por ele em resposta a Napoleão Bonaparte que, lendo seus trabalhos, indagou-lhe: – “Não vi a presença do Criador em suas obras, marquês”. Ao que Laplace respondeu: – “A hipótese divina, senhor, de fato explica tudo; no entanto, não permite prever nada. Como cientista, minha função é produzir trabalhos que permitam previsões.”
A precisa definição sobre a natureza da ciência que Laplace utilizou se aplica como uma luva aos resultados a que chegamos recentemente, Suzana Herculano-Houzel e eu, por meio da tese de mestrado do aluno Frederico Azevedo, no Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Nossa intenção inicial era testar a exatidão do número de neurônios estimado para o cérebro humano em todos os livros de neurociência: cem bilhões. Esse número foi sempre considerado tão verdadeiro, que eu mesmo me senti seguro em dar esse título a um livro que publiquei há oito anos e a esta coluna da Ciência Hoje On-line.
No entanto, ao rever a literatura especializada, concluímos que não havia, na verdade, qualquer evidência científica sólida para esse número. E mais: os livros declaravam sempre que, para cada neurônio do cérebro, existiriam 10 células gliais, os elementos coadjuvantes dos neurônios nas funções cerebrais. E, também neste caso, nenhuma evidência científica.
Novo método de contagem
A motivação em encontrar evidências para esse número nos levou a inventar um método de contagem absoluta de células do cérebro de qualquer animal, com alto grau de confiabilidade. Testamos o método em ratos, depois o aplicamos a diferentes espécies de roedores. Suzana fez o mesmo para diferentes espécies de primatas, e aí a coisa começou a ficar interessante do ponto de vista da teoria da evolução.
É que, quando se correlaciona o tamanho do cérebro com o seu número de neurônios e de células não-neuronais, encontra-se uma regra matemática precisa, chamada “regra de escala”, característica de cada grande grupo de animais. Na ordem dos roedores, por exemplo, o número de neurônios cresce proporcionalmente ao tamanho do cérebro, e a função matemática que descreve essa correlação é uma função potência.
O cérebro dos roedores cresce mais para um menor acréscimo de neurônios do que o cérebro dos primatas, que atinge grandes números de neurônios em um tamanho menor de cérebro.
Na ordem dos primatas, diferentemente, o número de neurônios também cresce proporcionalmente ao tamanho do cérebro, mas a função matemática é uma função linear. Isso significa que, se existisse um roedor com 100 bilhões de neurônios, este teria um cérebro de 45 quilos e um corpo de 110 toneladas!
Foi mais vantajoso, então, durante a evolução, tirar vantagem de uma ordem de animais – os primatas – cuja regra de escala é linear, porque neste caso o aumento do número de células não exige aumento tão absurdo do tamanho do cérebro e do corpo.
Uma característica das regras de escala é que elas permitem prever o número de neurônios ou de células não-neuronais de qualquer roedor, ou de qualquer primata, mesmo sem contar diretamente essas células. É a beleza do raciocínio científico tão bem enfatizado por Laplace.
E o cérebro humano?
Muito bem. E o cérebro humano? Nossa primeira abordagem foi aplicar a ele a regra de escala dos primatas. Quantos neurônios, de acordo com a função linear determinada, deveria ter um primata com um cérebro de 1,5 quilo, o peso aproximado do cérebro humano? Bingo! O resultado estimado ficou perto dos cem bilhões.
Neste caso, porém, não poderíamos parar na estimativa, porque os evolucionistas acreditavam que o cérebro humano é especial: um cérebro enorme, muito maior do que o de qualquer outro primata, para um corpo relativamente pequeno, pelo menos em comparação com os orangotangos e gorilas. O cérebro humano devia ser um ponto fora da curva, um objeto especial na natureza!
Números absolutos de neurônios e células não-neuronais nas principais regiões do cérebro humano. Modificado de Azevedo e colaboradores (2009).
Nosso aluno Fred obteve cérebros masculinos fornecidos pelo Banco de Cérebros da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), pertencentes a homens de 50-70 anos de idade, falecidos de causas não-neurológicas e sem comprometimento mental de qualquer tipo.
Fred levou um ano para padronizar a técnica para o material humano e, no ano seguinte, conseguiu determinar o número médio de neurônios: 86 bilhões, abaixo do “número mágico” aceito até o momento.
E mais: não era verdade que o número de células não-neuronais seria 10 vezes maior do que o de neurônios. Encontramos, em vez disso, uma proporção de 1 para 1. Outro mito desfeito.
O mais importante de tudo é que os números obtidos experimentalmente puderam ser colocados na função matemática de escala dos primatas e casaram perfeitamente! A conclusão é que os seres humanos têm um número de neurônios previsível para o tamanho de cérebro que possuem. Não temos, assim, nada de excepcional: somos beneficiários da evolução das espécies, que selecionou uma ordem de animais cujo número de neurônios pode crescer de modo mais compacto que os demais, sem exagerar no tamanho do cérebro. E ainda temos a sorte de sermos, dentre os primatas, a espécie com o maior cérebro.
Agora, a ciência que pratico com tanto prazer me criou um problema: como faço com o título de meu livro e desta coluna, que se tornaram inexatos? Estou aberto às sugestões dos leitores. Que título poderei usar para a nova edição que sairá este ano, e para a continuidade da coluna? Mande suas ideias para rlent@anato.ufrj.br .
SUGESTÕES PARA LEITURA
F.A.C. Azevedo e colaboradores (2009) Equal numbers of neuronal and non-neuronal cells make the human brain an isometrically scaled-up primate brain. Journal of Comparative Neurology vol. 513: pp. 532-541.
S. Herculano-Houzel e colaboradores (2007) Cellular scaling rules for primate brains. Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA vol. 104: pp. 3562-3567.
S. Herculano-Houzel e R. Lent (2005) Isotropic fractionator: A simple, rapid method for the quantification of total cell and neuron numbers in the brain. Journal of Neuroscience vol. 25: pp. 2518-2521.
R. Lent (2002) Cem Bilhões de Neurônios. Editora Atheneu, Rio de Janeiro, 698 pp.
Roberto Lent
Professor de Neurociência
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro
27/02/2009