Muitas posições acerca da linguagem têm como pano de fundo a questão da exatidão, do nome ‘correto’ da coisa. Estrangeirismos são um capítulo deste debate: por que importar palavras, se temos equivalentes? Ora, não são equivalentes. ‘Salvar’ não é ‘gravar’: é ‘gravar em computador’.
Palavras não são etiquetas de objetos. Se fossem, todas as línguas empregariam as mesmas palavras para as mesmas coisas ou, alternativamente, a tradução seria tarefa muito fácil.
Há muitos fatos mostrando que cada língua organiza o mundo a sua maneira. Vejamos alguns exemplos, dos quais, na verdade, só especialistas tratam. Quem estuda línguas pelos manuais de redação fica longe dessa sofisticação…
Uma distinção importante, por exemplo, ocorre entre nomes contáveis e nomes massivos. Há nomes que denotam ‘coisas’ avaliadas como entidades discretas, que podem ser contadas. ‘Menino’ é contável: podemos dizer ‘um menino’, ‘três meninos’, ‘seis meninos’ etc. Um conjunto qualquer de meninos sempre pode ser relacionado a um número.
Mas parte dos nomes denota ‘coisas’ que são percebidas como massivas, não discretas, e, portanto, não contáveis. Um exemplo é ‘água’. Dizemos ‘muita água’, ‘pouca água’, ‘mais água’, mas não dizemos ‘uma água’ ou ‘três águas’ (se dissermos, estaremos falando de outra coisa – tipos de água, por exemplo).
Outro fenômeno: objetos que parecem semelhantes no mundo podem, numa mesma língua, ser considerados massivos ou discretos: no inglês, rice (‘arroz’) é massivo e lentil (‘lentilha’) é contável. O português tem algo semelhante: dizemos “caiu uma lentilha na toalha” ou “caíram lentilhas na toalha”, mas devemos dizer “caíram dois grãos de arroz na toalha” (“caíram arrozes na toalha” é uma construção estranha). Assim, também em português a denotação de ‘arroz’ é massiva, enquanto a de ‘lentilha’ é discreta.
Enquanto se pode dizer, em português, ‘duas cordas’, indicando duas entidades distintas, também se pode dizer ‘dois metros de corda’, indicando quantidade de uma única entidade massiva. Mas observe-se a diferença entre ‘muita corda’ e ‘muitas cordas’. A forma singular e a forma plural remetem a ‘coisas’ distintas no mundo.
Correspondência entre línguas
Expressões contáveis em uma língua podem ter correspondentes massivos em outra. Veja-se esta anedota: um americano casado com uma brasileira entra com a esposa num supermercado e ela diz “a maçã está bonita”; ele pergunta “qual delas?”. Ou: ela diz “comprei um sapato”; ele pergunta “por que só um?”.
Há ainda pares de sinônimos – um contável e outro massivo – que têm comportamentos diferentes em diferentes línguas. Por exemplo, em inglês, o par hair/hairs (‘cabelo/cabelos’) corresponde, em italiano, ao par capello/capelli, mas enquanto em inglês é possível dizer “I cut my hair” (e não é possível dizer “*I cut my hairs”), em italiano podemos dizer “Mi sono tagliato i capelli” (plural), mas não “*Mi sono tagliato lo capello” (singular). Em português, por outro lado, podemos tanto dizer “cortei meu cabelo” quanto “cortei meus cabelos”.
Os exemplos acima estão mais bem tratados em trabalho de José Borges Neto publicado em Língua, Texto, Sujeito e (Inter)discurso, organizado por Brunelli, Mussalim e Fonseca-Silva (São Carlos: Pedro e João Editores).
José Luiz Fiorin apresenta casos semelhantes em ‘O projeto semiológico’, publicado em Saussure: a invenção da linguística, volume organizado por ele mesmo, com Flores e Barbisan (São Paulo: Contexto). Para sustentar a tese clássica de que o signo é arbitrário, cita casos como os seguintes: o termo inglês skin se traduz em português por ‘pele’, ‘casca’ e ‘couro’. “Assim, skin é a pele do ser humano, é o couro de vaca, é a casca da banana e é até a nata do leite”.
Por outro lado, ‘pele’, em português, tem traços como /cobertura de animal ou frutas e legumes/, /maciez/, /flexibilidade/, /sedosidade/. Por isso, tomate tem pele, mas pera, não. Além disso, a camada externa é chamada de pele quando cobre o corpo de um animal e também quando está separada dele, especialmente se o animal tiver pelo sedoso e abundante (daí os casacos de pele).
Para expor a noção de valor, Fiorin cita casos como: o que se expressa por shell em inglês corresponde a pelo menos três palavras do português: ‘casca’, ‘concha’ e ‘casco’. ‘Casca’, por sua vez, é um termo geral: serve para ostras, pão (em inglês, crust), ovo, ferida (em inglês, scab). E, como se vê, é uma espécie de inverso do que ocorre com skin e suas traduções para o português…
Os exemplos podem ser multiplicados. Uma lista bem escolhida mostra cruzamentos curiosos, todos comprovando o mesmo fato: que, em cada língua, uma palavra designa coisas diferentes (embora com alguma semelhança – casca de ferida e de ovo, por exemplo) e que raramente cada pequena teia de uma língua corresponde exatamente a alguma de outra língua.
Os estruturalistas tinham boas razões para dizer que cada língua expressa uma cultura. E também os que tentam deter o desaparecimento de línguas: seu argumento é que com cada uma delas desaparece uma visão de mundo.
É uma pena, mas questões como estas raramente são objeto de ensino. E só por milagre aparecem nos meios de comunicação.
Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas