As hemácias em formato de foice (“falciformes”) foram descritas pela primeira vez por Herrick, em 1910, em um paciente negro.
Na coluna de março apresentei dados históricos que demonstram o importante papel da anemia falciforme na gênese do conceito de “doença molecular” e na evolução da medicina genômica. Agora, quero questionar a conceituação da anemia falciforme como “doença racial” e apresentá-la como uma “doença geográfica”, uma visão mais moderna e correta.
A percepção da anemia falciforme como uma doença de negros é antiga. A descrição dessa enfermidade data de 1910, quando o médico americano James B. Herrick (1861-1954) apresentou o estudo de um único paciente negro no qual identificou as células vermelhas do sangue com formato de foice (ver figura).
Em 1923, o pediatra Virgil Preston Sydenstricker (1889-1964) publicou um artigo chamando atenção para o fato de a doença ser familial, afetar igualmente os dois sexos e provavelmente acometer apenas pacientes negros. A partir de então, firmou-se no cânone médico a conexão entre anemia falciforme e “raça negra”.
A associação inicial da doença com uma “raça” teve conotações políticas e ocorreu como parte do fenômeno de “patologização” do negro americano, bem descrito por Melbourne Tapper em seu livro In the blood: sickle cell anemia and the politics of race (“No sangue: anemia falciforme e a política racial”). Posteriormente, na década de 1970, a conexão foi adotada paradigmaticamente pelo movimento negro americano, em especial pelo cardiologista Richard Williams no seu livro Textbook of black-related diseases (“Livro-texto de doenças do negro”).
É curioso que o co-autor de Williams nesse tratado tenha sido nada mais, nada menos que o notável ativista Martin Luther King (1929-1968), Nobel da Paz em 1964, que não era médico. Sua participação nos remete à importância social e cultural das doenças e às conseqüências da forma como elas são percebidas e apresentadas.
Minha tese nesta coluna é que, como biologicamente não existem raças humanas (tema discutido aqui ), é inaceitável o paradigma de “doenças raciais”, que reforça a visão errônea de que há diferenças biológicas entre pessoas negras e brancas. A distribuição populacional da anemia falciforme e especialmente a sua maior prevalência em indivíduos negros não tem nada a ver com raça, mas sim com geografia. Para melhor entender isso, vamos ter de fazer um détour genético.
Evolução e doenças infecciosas
O grande cientista inglês J.B.S. Haldane (1892-1964), um polímata. Haldane começou sua carreira científica como professor de fisiologia na Universidade de Oxford, onde fez pesquisas importantes sobre fisiologia humana subaquática. Transferiu-se, depois, para a Universidade de Cambridge como professor de bioquímica, tendo gerado contribuições fundamentais sobre cinética enzimática. Posteriormente, foi como professor de genética para o University College em Londres, onde ajudou a criar a genética de populações moderna. Haldane foi um comunista ativo e escreveu uma coluna de ciência no jornal Daily Worker. Na foto ele está participando de um comício em Trafalgar Square, Londres, em 1937. Na década de 50, desencantado com o imperialismo militar britânico, mudou-se para a Índia e aderiu ao budismo jainista.
O grande geneticista-bioquímico-fisiologista-ativista político inglês J.B.S. Haldane (1892-1964) é um dos meus ídolos. Já mencionei seu nome em uma coluna anterior , como um dos pais da nova síntese evolucionária, ou seja, da compatibilização entre Darwin e Mendel que ocorreu na primeira metade do século 20.
Durante décadas, Haldane escreveu semanalmente sobre ciência no jornal Daily Worker, publicação oficial do Partido Comunista inglês. De acordo com John Maynard-Smith (1920-2004), outro importante geneticista inglês, Haldane era “superlativo” como popularizador da ciência, porque captava conexões que ninguém havia percebido antes.
Em 1949, Haldane proferiu uma conferência na Itália e realçou, aparentemente pela primeira vez, o fato de que as doenças infecciosas têm um papel evolucionário importantíssimo como agentes seletivos. Por anos eu tentei em vão conseguir o artigo com o texto dessa famosa conferência, publicado no inacessível periódico italiano La Ricerca Scientifica.
Só muito recentemente tive sucesso, graças a uma reedição do texto na revista indiana Current Science (acesse o texto clicando aqui ). O artigo é genial – Haldane em sua melhor forma! Vejam um pequeno trecho, de simplicidade cristalina (minha tradução):
“Provavelmente uma alteração bioquímica muito pequena pode conferir a uma espécie hospedeira um grau substancial de resistência a um parasito bem adaptado. Isto tem um importante efeito evolucionário. Significa que é vantajoso para o indivíduo possuir um fenótipo bioquímico raro […] E significa, também, que é uma vantagem para a espécie ser bioquimicamente diversa e mesmo mutável em referência a genes envolvidos na resistência às doenças.”
Haldane propôs, adicionalmente, que a seleção de fenótipos bioquímicos raros não era apenas de importância na manutenção da variabilidade dentro das espécies, mas devia ser também um mecanismo de especiação.
A hipótese da malária
Um ano antes dessa conferência de Haldane, James Neel (apresentado na coluna de março ) havia feito uma proposta, trabalhando dentro do paradigma de “doença racial” da anemia falciforme. Neel postulou que a alta freqüência dessa doença em negros americanos e africanos e também da talassemia em populações mediterrâneas (ver também coluna de março) refletia uma alta taxa de mutação do gene da hemoglobina nesses grupos étnicos distintos.
Haldane discordou. Como relatado por Giuseppe Montalenti em um adendo ao artigo de 1949, ele, informado da alta freqüência de heterozigotos da talassemia em regiões endêmicas de malária no sul da Itália, propôs que, como as hemácias dos heterozigotos para a talassemia eram menores, esse fato os tornaria mais resistentes à parasitose. Nascia assim a “hipótese da malária”, cuja primeira confirmação foi feita não em estudos de talassemia, mas da própria anemia falciforme.
Em 1954, o médico inglês Anthony C. Allison publicou resultados de sua pesquisa sobre malária e anemia falciforme em Uganda. Ele observou que, em crianças pequenas com malária, as densidades do parasita Plasmodium falciparum no sangue eram quatro vezes menores em heterozigotos AS do que em homozigotos normais AA. Ele calculou que as crianças AS tenham uma chance 76% maior de sobreviver ao primeiro ataque de malária do que crianças AA.
Mapa mostrando a impressionante sobreposição geográfica da malária falciparum, da anemia falciforme e da talassemia (clique na imagem para ampliá-la).
Mais tarde a hipótese da malária foi sacramentada pela óbvia correspondência geográfica entre a prevalência da malária causada pelo Plasmodium falciparum e a freqüência do gene falciforme na África (ver figura). Observe-se que o gene da anemia falciforme (alelo beta S ) não é visto nas populações de regiões geográficas da África nas quais a malária não é endêmica.
Por exemplo, ele está ausente nas populações das regiões altas da Etiópia (Tigre, Falasha, Amhara e Galla), nos Masai, Kamba e Chaga do Quênia e da Tanzânia, nos bosquímanos e hotentotes da parte sul da África e nos Shona, uma população de língua banto do Zimbábue. Em outras palavras: a presença do gene não tem nada a ver com cor ou ”raça”, mas com geografia.
Doenças genéticas e geografia
Por outro lado, além da África subsaariana, o alelo beta S e a anemia falciforme podem ser vistos na África do Norte, Grécia, Itália, Oriente Médio, Península Arábica, Índia e até na China (ver figura). A razão dessa ampla distribuição ficou mais clara com os avanços em genética molecular humana.
Estudos de marcadores genéticos que flanqueiam o gene da beta-globina mostraram que, na verdade, aconteceram várias mutações beta S independentes que se estabeleceram em populações expostas à malária falciparum. Quatro das mutações ocorreram na África e receberam os nomes das respectivas regiões geográficas em que se fixaram: tipo Senegal, tipo Camarões, tipo Benin e tipo República Centro-africana (também chamada tipo Banto). A quinta mutação beta S , denominada tipo Árabe-Indiano, não ocorre na África e sim, como o nome indica, na Ásia Menor e Índia.
Deve ficar bem claro, então, que a anemia falciforme não é uma “doença de negros” nem uma “doença africana”, mas sim uma doença eminentemente geográfica, produto de uma estratégia evolucionária humana para lidar com a malária causada pelo Plasmodium falciparum.
A talassemia é uma doença também geográfica, que afeta populações da África, do Mediterrâneo e da Ásia (ver figura) e representa uma estratégia evolucionária alternativa para resistência à malária.
Analogamente, a fibrose cística (mucoviscidose) é outra doença geográfica, desta vez européia, que emergiu como uma provável estratégia evolucionária de resistência à febre tifóide. Já a doença de Tay-Sachs, especialmente vista em judeus asquenazitas, parece estar ligada à resistência à tuberculose.
Mas deve ficar claro e evidente que a fibrose cística não é uma “doença européia”, nem a doença de Tay-Sachs é uma “doença judaica”. Altas freqüências da fibrose cística, por exemplo, já foram observadas em algumas populações do Oriente Médio e da África e a doença de Tay-Sachs é vista em elevada freqüência em canadenses franceses da província de Quebec.
Podemos, com esses exemplos, perceber o papel fundamental das doenças infecciosas na evolução do genoma humano e a notável importância do território endêmico dessas enfermidades na seleção de certos genes em determinadas populações humanas. É totalmente desnecessário invocar conceitos arcaicos como “raça” e “doenças raciais” para explicar a variação de prevalência de doenças genéticas em diferentes grupos continentais. A geografia explica tudo.
Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
11/04/2008