Na anemia falciforme, as células vermelhas do sangue (hemácias), que normalmente têm um formato discóide (A), assumem formas bizarras que lembram foices quando em baixas tensões de oxigênio, seja no laboratório ou em alguns órgãos do corpo, como o baço.
A moléstia, uma anemia severa e freqüentemente fatal da infância, havia sido descrita bem antes, em 1910. A principal característica laboratorial da anemia falciforme – e a razão do seu nome – é uma mudança da forma das células vermelhas (hemácias) do sangue do seu aspecto normal discóide para um formato de foice (“falciforme”) quando expostas a baixas tensões de oxigênio (ver figura).
A propósito, um outro nome para a anemia falciforme é drepanocitose (da palavra grega para foice) e as hemácias anormais são chamadas drepanócitos. Um detalhe interessante é que existem pessoas que são sadias, mas cujas hemácias, quando expostas a pouco oxigênio, também assumem o formato de foice, o que é chamado de “traço falcêmico”.
Vale lembrar que a hemoglobina, uma proteína, é o principal constituinte das hemácias e responsável pela cor vermelha que colore essas células e o próprio sangue. A função principal da hemoglobina é carrear oxigênio dos pulmões para os tecidos e gás carbônico dos tecidos para os pulmões.
Ao tomar conhecimento da anemia falciforme em 1945, durante uma conversa com o Dr. William Castle, da Universidade Harvard, Pauling já sabia que a molécula de hemoglobina tinha conformações diferentes na presença ou ausência de oxigênio. Ele intuiu, corretamente, que o formato em foice das hemácias na doença deveria ser devido a uma anormalidade da molécula de hemoglobina.
Um ano depois, chegou para fazer um doutorado no laboratório de Pauling no Instituto de Tecnologia da Califórnia (Caltech) um jovem médico chamado Harvey Itano. A ele foi dado o projeto de estudar a molécula de hemoglobina dos pacientes com anemia falciforme. Itano usou a técnica da eletroforese em fronteiras movediças (moving boundary electrophoresis), inventada alguns anos antes pelo sueco Arne Tiselius (1902-1971, Nobel de Química em 1948) e que permitia o estudo das propriedades das proteínas pela sua mobilidade quando submetidas a um campo elétrico.
Separação das moléculas de hemoglobina em campo elétrico (eletroforese), feita pela primeira vez por Harvey Itano no laboratório de Linus Pauling. No paciente com anemia falciforme é vista uma única espécie molecular com mobilidade reduzida (hemoglobina S) em comparação a uma pessoa normal (hemoglobina A), enquanto na pessoa sadia com traço falcêmico são vistas as duas formas da hemoglobina.
Ao comparar as hemoglobinas de indivíduos normais e afetados, foi “pimba na gorduchinha”, como diria o grande locutor esportivo Osmar Santos! A molécula da hemoglobina dos pacientes com drepanocitose mostrou ter uma migração mais lenta em campo elétrico (ver figura).
Uma nova medicina
Esta foi uma descoberta fundamental de Pauling e sua equipe, merecedora até de um terceiro Nobel! Nunca antes a causa de uma doença havia sido traçada a uma lesão em uma molécula. Uma pequena mudança de carga em uma proteína podia significar a diferença entre a vida e a morte! Os resultados foram publicados em 1949 na revista Science, em um artigo memoravelmente intitulado “Sickle cell anemia: a molecular disease” (“Anemia falciforme: uma doença molecular”). Nascia uma nova medicina, a medicina molecular.
Clique aqui para ver um vídeo de Pauling, em 1960, contando a estória dessa importantíssima descoberta.
Quatro meses antes do artigo de Pauling e Itano na Science, apareceu na mesma revista um outro artigo publicado pelo americano James V. Neel (1915-2000), geneticista da Universidade de Michigan, com o título “The inheritance of sickle cell anemia” (“A hereditariedade da anemia falciforme”).
Neel estudou 21 casais, pais de crianças com anemia falciforme, e observou que todos eles tinham o “traço falcêmico”, ou seja, eram sadios, mas suas células vermelhas assumiam o formato de foice quando expostas a pouco oxigênio no laboratório. Com base nisso, Neel postulou que os pacientes com anemia falciforme eram homozigotos para um gene anormal, enquanto seus pais com o traço falcêmico eram heterozigotos. Resumo da ópera: a doença era herdada de acordo com princípios mendelianos, de forma recessiva.
No final do artigo, Neel destacou que, à luz desse novo conhecimento da transmissão genética da anemia falciforme, era possível predizer a ocorrência da doença em uma família a partir da presença do traço falcêmico em ambos os membros de um casal. Emergia assim o aconselhamento genético moderno, lastreado em sólidas bases científicas. Neel adicionou ainda que, em teoria, esse aconselhamento poderia ser aplicado em escala populacional, reduzindo a incidência da doença.
Exemplar da biblioteca do colunista: volume 2, de 1947, dos Arquivos da Universidade da Bahia, contendo o artigo de Jessé Accioly intitulado “Anemia falciforme: relato de um caso com infantilismo”. À direita, o diagrama usado por Jessé Accioly para explicar a sua hipótese de herança autossômica recessiva da anemia falciforme.
Genial, não? Mas havia um interessante precedente para essas idéias. Em 1947, Jessé Accioly, então um formando de medicina em Salvador, publicou nos Arquivos da Universidade da Bahia um artigo intitulado “Anemia falciforme: apresentação de um caso com infantilismo”, no qual ele já propunha a hipótese de uma herança autossômica recessiva para a doença. Esse detalhe histórico foi apontado pela geneticista brasileira Eliane Azevedo em um artigo publicado em 1973 no American Journal of Human Genetics.
Um brasileiro injustiçado?
Vou fazer parênteses para um estorinha interessante. Como sou um “rato de sebos”, tomo o cuidado de levar o meu Guia dos sebos das cidades do Rio de Janeiro e São Paulo de Antônio Carlos Secchin quando vou a essas cidades. Pois bem: há uns 3 ou 4 anos, estava eu em Copacabana, com algumas horas para matar antes embarcar de volta para Belô, quando decidi visitar alguns sebos na vizinhança. Eis que me deparo com um exemplar dos Arquivos da Universidade da Bahia de 1947, contendo o artigo de Accioly, que adquiri imediatamente e que pode ser visto na figura ao lado.
É possível, a partir dessa publicação, concluir, como clamado por alguns nacionalistas roxos, que o verdadeiro descobridor do mecanismo de herança da anemia falciforme foi Jessé Accioly? Sinto muito, mas, apesar de eu reconhecer o brilhantismo e excelente intuição do jovem baiano, não acho possível endossar essa tese.
Assim como Neel faria mais tarde, Accioly corretamente percebeu que, para a sua hipótese ser verdadeira, “seria preciso que todos os pacientes com anemia falciforme fossem filhos de dois falcêmicos”. A diferença fundamental entre eles foi que o americano testou experimentalmente a sua hipótese, mas o baiano, não. O progresso da ciência depende de hipóteses e de experimentação. Infelizmente, hipóteses apenas não bastam.
Além disso, estabelecer prioridades em ciência é complicado, especialmente em se tratando de idéias e conceitos. O próprio Neel já havia mencionado anteriormente a hipótese autossômica recessiva da anemia falciforme em uma publicação no periódico Medicine em 1947. Ademais, em 1944 ele já havia publicado no Archives of Internal Medicine a demonstração da herança autossômica recessiva de uma outra anemia hemolítica, a talassemia, que mais tarde provou também ser uma doença da hemoglobina.
O brilhante químico americano Linus Pauling (1901-1994), do Caltech, em foto de dezembro de 1949, época da publicação de seu seminal artigo na Science (foto: Ava Helen and Linus Pauling Papers).
Não bastando isto, Linus Pauling também reivindicou a prioridade da idéia da herança recessiva em seu revolucionário artigo com Itano, em 1949, escrevendo (minha tradução): “Nossos resultados já haviam permitido que fizéssemos essa inferência antes da publicação do artigo de Neel. A existência da hemoglobina normal e da hemoglobina da anemia falciforme em proporções mais ou menos iguais no traço falcêmico está em completo acordo com esta hipótese”.
Logo após estes artigos, Itano e Neel começaram a colaborar, o que levou quase que imediatamente à descoberta de uma segunda doença com alterações na hemoglobina, a “anemia de células em alvo”, menos grave que a anemia falciforme. Conjuntamente, eles descreveram várias outras “hemoglobinopatias” nos anos subseqüentes.
A meu ver, podemos estabelecer 1949 como a data de nascimento da medicina molecular, mas em um parto multigemelar, pois junto com ela nasceram também a genética médica moderna e a genética molecular.
A explicação na escala do DNA
Oito anos após a publicação do artigo de Pauling e exatamente 10 anos após o artigo de Jessé Accioly, o bioquímico teuto-americano Vernon Ingram (1924-2006) publicou na Nature um artigo de enorme importância. Ele mostrou que na porção beta-globina da molécula de hemoglobina de pacientes com anemia falciforme (agora chamada hemoglobina S) havia uma troca do sexto aminoácido, uma substituição de ácido glutâmico para valina.
Na presença de pouco oxigênio, a hemoglobina sofre uma mudança conformacional e expõe essa valina, o que cria uma instabilidade termodinâmica que só se resolve com a polimerização da hemoglobina em longas fibras. Estas, por sua vez, precipitam-se no interior das hemácias, forçando-as a assumir o formato de foice. Quod erat demonstrandum.
Com a elucidação do código genético no final da década de 1950, ficou claro que, na escala do DNA, a única mudança de base nucleotídica capaz de levar a uma troca de um ácido glutâmico por uma valina era uma mutação GAG → GTG no sexto códon. Assim, estava esclarecida a natureza da doença desde as suas característica clínicas até o seu nível mais íntimo na molécula de DNA.
Interessantemente, a anemia de células alvo estudada por Itano e Neel (hemoglobina C) também apresenta mutação no mesmo códon, desta vez com uma alteração GAG → AAG, levando a uma troca do ácido glutâmico por uma lisina. Percebemos, assim, a delicadeza do processo de doença molecular – minúsculas diferenças moleculares podem ter impactos fenotípicos enormes.
Outro avanço importante ocorreu em 1978, quando Yuet W. Kan e Andrée Dozy em São Francisco demonstraram que era possível diagnosticar a presença da mutação que causa a anemia falciforme diretamente no DNA do paciente. Essa descoberta permite, inclusive, o diagnóstico pré-natal da anemia falciforme em células fetais do líquido amniótico colhido no segundo trimestre de gestação. A técnica usada por eles – o polimorfismo de tamanho de fragmentos de restrição (RFLP) – é usada até hoje para o diagnóstico de centenas de doenças em laboratórios de genética de todo o mundo.
Quando, em 1985, foi desenvolvida uma outra técnica revolucionária de estudo do DNA, a PCR – reação em cadeia da polimerase –, pelo bioquímico americano Kari Mullis (Nobel de Química de 1993), a primeira aplicação do método foi no diagnóstico molecular pré-natal da anemia falciforme.
Assim, temos a anemia falciforme não só como pivô do nascimento da medicina molecular, da genética médica moderna e da genética molecular, como também dos principais avanços posteriores feitos nessas áreas. No próximo mês continuarei a abordar a anemia falciforme, discorrendo sobre alguns de seus aspectos evolucionários e populacionais.
Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
14/03/2008