Entre os muitos enigmas da condição humana, encontra-se o de suas relações com os demais seres do mundo, particularmente aqueles que consideramos como “vivos” e, dentre estes, com ainda mais premência, aqueles que são chamados em nossa cultura de “animais”.
O humano, imerso como é nas conexões gerais da natureza, deve construir sistemas de significado em que sua continuidade e sua descontinuidade dentro delas sejam tematizadas, elaboradas, vivenciadas. Essa trama de sentido é a tarefa básica de cada cultura, a estrutura mais fundamental de toda visão de mundo, e assume formas muito diversas, com implicações fenomenológicas de imensa riqueza.
Em julho, durante a IX Reunião de Antropologia do Mercosul, no grupo de trabalho sobre antropologia e medicamentos (a que já me referi em coluna anterior), foi apresentada por Jean Segata, pesquisador do Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí, uma instigante etnografia de uma clínica veterinária de Rio do Sul, em Santa Catarina. Seu título é ‘Tristes amigos. A medicalização de animais de estimação’.
No estudo, Segata apresenta uma situação de intenso crescimento da demanda por atendimento terapêutico a animais domésticos, particularmente em relação a diagnósticos de depressão ou ansiedade canina. Descreve os processos socialmente aprendidos de reconhecimento dessa condição, em que novos roteiros terapêuticos se desenham, envolvendo a sociabilidade entre humano e animal, a alimentação, a sexualidade e – no limite – o consumo regular de medicamentos psicotrópicos.
É notável o paralelismo entre as perturbações psicológicas humanas e as caninas que se vai construindo na imaginação social, acompanhando um processo de antropomorfização dos animais de estimação já longamente reconhecido como característico das transformações modernas da família e da pessoa.
Essa antropomorfização é ainda mais notável porque a cultura ocidental moderna se caracteriza por uma cisão particularmente acentuada entre a humanidade e a animalidade, decorrente das transformações cosmológicas emergentes no início da modernidade, com a afirmação do caráter mecânico do universo, passível do tipo de conhecimento e intervenção que conhecemos sob a forma da ciência e da tecnologia.
Os animais, que tinham compartilhado com os humanos degraus próximos na criação, no modelo medieval da ‘grande cadeia dos seres’ (segundo o qual o mundo é apresentado como uma série contínua e progressiva de entes), foram os mais afetados por esse processo de cisão, relegados a uma posição distante dos portadores da razão iluminista – como máquinas movidas por cegos ‘instintos’.
Animais de estimação
Por outro lado, a concomitante incitação à privacidade e ao intimismo doméstico, associável à transição da vida na corte e da hegemonia aristocrática para o mundo burguês, ensejou a generalização da passagem dos animais domésticos (em que a proximidade afetiva ainda estava ligada a funções práticas ou de prestígio) a ‘animais de estimação’, importantes apenas pelo aconchego afetivo propiciado a seus donos.
Essa nova categoria vem assumindo notável importância em todas as sociedades modernas, o que é evidenciado pelos sinais de assimilação à condição humana, entre eles, o consumo dos mesmos medicamentos.
As demais espécies animais, longamente exploradas ou devastadas pela espécie humana, mereceram outro rumo imaginário, decorrente das denúncias românticas contra o império da razão mecanicista. A partir de meados do século 18, começaram a surgir as primeiras preocupações ecológicas e as primeiras inquietações com o desaparecimento de espécies e o abuso dos animais.
Mas foi apenas no século 20 que se estruturaram formas institucionais e legais de ‘proteção aos animais’, hoje muito generalizadas, como atesta a aprovação de uma Declaração Universal dos Direitos dos Animais, pela Unesco, em 1978.
Essa linha pública e oficial de proteção segue os moldes do universalismo ocidental moderno, estendendo os direitos de igualdade e liberdade aos seres que compartilham com os humanos sua condição vital, seja sob a forma de espécies ou de exemplares individuais.
A linha das experiências privadas, que envolve sobretudo os animais domésticos presentes nas residências dos habitantes das cidades, segue por outra direção, mais integrada, passível de elaborações ‘afetivas’ e de um regime de trocas considerado caloroso e enriquecedor.
Relações essenciais
Essa segunda vertente apresenta possibilidades de comparação muito interessantes, por se apresentar mais próxima, sob certos aspectos, do modo mais entranhado com que as outras culturas elaboram a relação dos humanos com os demais seres vivos.
Prevalecem nelas outros recortes e dinâmicas cosmológicas, com mudanças de estatuto extremamente complexas, metamorfoses e deslizamentos de múltipla ordem e fundamental importância. Lembremo-nos de nossos ‘contos de fadas’, que retêm sinais dessas outras visões de mundo, com princesas, anões e heróis deslocando-se entre formas relacionais de animalidade e de humanidade.
Há hoje diversas frentes de pesquisa e interesse antropológico nessa seara. Os estudos vão desde a descrição e análise das classificações culturais do mundo natural (as ‘etnociências’) até a discussão dos pressupostos epistemológicos e ontológicos (relativos à natureza do ser) que subjazem às nossas representações sobre realidade, natureza e animalidade.
O antropólogo francês Philippe Descola (1949-) chamou de “naturalista” o modo como se articula o modelo nativo do Ocidente, contrastável com uma série de outros modelos etnograficamente reconhecíveis, em que relações de reciprocidade, predação e dádiva podem prevalecer. Na visão de mundo naturalista, a natureza é uma dimensão da realidade, externa e independente do sentido, do interesse e da ação dos humanos, que com ela se relacionam de fora e à distância (mesmo em relação à parte de si mesmos que se considera ‘natural’ por ser ‘animal’).
O sonho de uma comunhão vital entre humanos e animais, libertada das constrições racionalistas de nossa cultura, permanece, porém, pulsante nessa fronteira tênue entre o processo da pesquisa etnográfica e a imaginação de nosso futuro.
“Assim como o indivíduo não está só dentro do grupo e cada sociedade não está só entre as demais, o homem também não está só no universo”, lembra o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss (1908-2009), na última página de seu Tristes Trópicos. E evoca uma possibilidade de contemplação da “essência do seu ser”… “no piscar de olhos pesado de paciência, de serenidade e de perdão recíproco que um acordo involuntário permite às vezes trocar com um gato.”
Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Descola, Philippe. Estrutura ou sentimento: a relação com o animal na Amazônia. Mana. Estudos de Antropologia Social, Rio de Janeiro, v. 4, n. 1, abril, 1998.
Ingold, Tim. Humanidade e Animalidade. Revista Brasileira de Ciências Sociais 28: 16, 1995.
Lévi-Strauss, Claude. Tristes trópicos. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
Kulick, Don. Animais gordos e a dissolução da fronteira entre as espécies. Mana. Estudos de Antropologia Social, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, out., 2009.
Thomas, Keith. O homem e o mundo natural: mudanças de atitude em relação às plantas e os animais, 1500-1800. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.