Antropologia e psicanálise

Como qualquer saber ou ciência, a psicanálise nasceu em um determinado contexto histórico, cultural e social e guarda na constituição os traços de sua gênese. Assim como as ciências físicas dependem de princípios cosmológicos desenhados no século 17 e bem representados até hoje pelo poderoso impulso da visão de mundo newtoniana, as ciências humanas emergentes ao final do século 19 cristalizaram seu desenho básico em torno de alguns outros princípios e questões comuns.

Os desenvolvimentos posteriores, tanto de umas quanto das outras, têm considerável autonomia, mas sua criatividade não pode subverter completamente os postulados básicos da configuração. Isso é menos evidente nas ciências naturais, onde prevalece a representação de uma fronteira sempre mutante, de um progresso indefinido do conhecimento, com permanente superação e substituição de paradigmas.

Nas ciências humanas – interpretativas como são, e não apenas descritivas –, os paradigmas tendem a conviver de maneira explicitamente paralela, como alternativas de conhecimento; ora estanques, ora combinadas em novos rumos.

A psicanálise e a antropologia social mantiveram muitos pontos de diálogo no último século e também se antepuseram como vias mutuamente excludentes ou complementares

A psicanálise e a antropologia social nasceram no mesmo período – os efervescentes anos de passagem entre os séculos 19 e 20 –, mantiveram muitos pontos de diálogo nesse último século e também se antepuseram como vias mutuamente excludentes ou complementares; sem que se esgotassem as possibilidades de reflexão sobre sua comunhão epistemológica.

Um recente seminário organizado na Universidad del Rosario, de Bogotá (Colômbia), propôs a discussão da relação entre a psicanálise e as ciências humanas, em diálogo cruzado de psicanalistas, antropólogos, historiadores e filósofos. Minha própria conferência dedicou-se a explicitar o que propunha serem os desafios comuns da psicanálise e da antropologia como ‘ciências românticas’ no século 21; o que pressupõe evidentemente que se esclareça desde logo o que entendo por ‘romântico’ em tal locução – apesar de já ter tratado do assunto em minha coluna ‘Antropologia é ciência?’.

Dadas as conotações pejorativas que o termo ‘romântico’ evoca entre as pessoas sérias, é preciso considerar que a referência remete à configuração filosófica e científica da ‘filosofia da natureza’ germânica oitocentista; talvez mais reconhecível pelos cientistas naturais como um ‘vitalismo’.

Não se trata de sentimentalismos ou de divagações irracionais ou descabeladas; mas sim de uma disposição sistemática em antepor ao mecanicismo da ciência de origem iluminista a consideração da especificidade dos fenômenos vitais e das circunstâncias específicas da ação e da experiência humana. Sua certidão de batismo foi a obra do escritor e cientista alemão J. W. Goethe (1749-1842) sobre as cores na visão humana – concebida como um manifesto de oposição à interpretação física da luz proposta pelo físico inglês Isaac Newton (1643-1727).

Coletivo e público x individual e privado

As ciências humanas nasceram de sucessivas recombinações dos postulados básicos desse anti-iluminismo, nutridas pelo organicismo biológico, pela hermenêutica religiosa; pelo senso de uma historicidade não-linear, emergente na obra do filósofo alemão J. G. Herder (1744-1803), ou de uma solidariedade entre língua e cultura, proposta pela primeira vez na linguística inventada pelo cientista alemão Guilherme Von Humboldt (1767-1835).

Essas ciências eram estimuladas por tudo o que parecia residual ou obscuro aos olhos da ciência normal e cuja explicação resistia às explicações naturalistas: a loucura, o sonho, a magia, o transe, a linguagem, o suicídio, o totemismo, o entusiasmo religioso, a influência política etc.

Alguns desses temas couberam à antropologia, em sua aventura de comparação com as culturas humanas ‘exóticas’; outros couberam à psicanálise, em sua aventura de exploração dos fenômenos ‘exóticos’ dos sujeitos.

O fundador da psicanálise, o neurologista austríaco Sigmund Freud (1856-1939), tinha um alto interesse na antropologia disponível em seu tempo e alguns dos pais fundadores das ciências sociais leram e discutiram as primeiras formulações da teoria psicanalítica, como no caso exemplar do antropólogo polaco-britânico Bronislaw Malinowski (1884-1942).

Bronislaw Malinowski
Bronislaw Malinowski com nativos nas Ilhas Trobriand em 1918. Um dos fundadores das ciências sociais, o antropólogo polaco-britânico leu e debateu as primeiras formulações da teoria psicanalítica, assim como o neurologista austríaco Sigmund Freud nutria um alto interesse pela antropologia disponível em seu tempo. (foto: Wikipedia Commons)

Esses interesses pioneiros não redundaram em diálogos continuados, limitados pelos interesses de afirmação identitária das disciplinas e por importantes diferenças de concepção do conhecimento possível sobre o humano.

Essas diferenças se construíram, em parte, por força das circunstâncias em que se desenrolava a observação e a interpretação em cada um dos casos: a psicanálise em um contexto clínico, terapêutico, altamente privado e individualizado; a antropologia em um contexto público, altamente coletivo, com responsabilidades éticas conjunturais. Por outro lado, a atenção à dinâmica intrapsíquica, estrategicamente isolada de seu contexto coletivo, se opõe diretamente à atenção à dinâmica da troca social e simbólica, estrategicamente abstraída dos nexos pessoais específicos.

Interseções contemporâneas

Ainda assim constituíram-se determinadas linhas de trabalho comum, não hegemônicas, o que se chamou eventualmente de uma ‘etnopsiquiatria’ ou de uma ‘antropologia psicanalítica’, dirigida à interpretação de fenômenos coletivos à luz dos princípios da psicodinâmica freudiana. Esse empreendimento já se iniciara na própria obra de Freud, em uma série de livros, como Totem e tabu e O mal-estar na civilização, dedicados à compreensão da vida social.

Alguns antropólogos fazem contemporaneamente uso da aparelhagem conceitual psicanalítica para interpretações culturais, tais como o cingalês Gananath Obeyesekere e o estadunidense Waud H. Kracke, que estuda sociedades tribais brasileiras.

Na fronteira entre a psiquiatria e a psicanálise há movimentos de recriação das terapêuticas ocidentais no atendimento a pacientes de outras culturas, como no círculo do psiquiatra francês Tobie Nathan. Em história, cito a figura muito peculiar do francês Jacques Maître, com sua ‘psicanálise sócio-histórica’, dedicada à compreensão de fenômenos religiosos imersos em histórias individuais e familiares.

Conto que as duas disciplinas possam se articular para enfrentar as tentações contemporâneas de redução do humano ao mero jogo da matéria de seus corpos

A antropologia não tem descuidado do entendimento, por outra parte, da floração de valores e comportamentos associados ao que se pode chamar de ‘mundo psi’; havendo para tanto uma importante contribuição brasileira, atualmente articulada em uma revista digital internacional chamada CulturasPsi.

De minha parte, conto que as duas disciplinas possam se articular para enfrentar as tentações contemporâneas de redução do humano ao mero jogo da matéria de seus corpos. Mas que também possam fazê-lo na compreensão da constituição das carreiras pessoais no contexto familiar, sobretudo em seu eixo temporal, transgeracional – horizonte em que se cruzam as determinações da vida psíquica e da vida sócio-cultural.

Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Sugestões de leitura:

Duarte, L. F. Freud e a imaginação sociológica moderna. In Birman, Joel (org.). Freud – 50 anos depois. Rio de Janeiro, Relume-Dumará, 1989.

Figueira, Sérvulo. Cultura da psicanálise. São Paulo, Brasiliense, 1985.

Loureiro, Ines. O carvalho e o pinheiro. Freud e o estilo romântico. São Paulo, Escuta/FAPESP, 2002.

Maître, Jacques. L’Orpheline de la Bérésina – Thérèse de Lisieux (1873-1897) – Essai de psychanalyse socio-historique. Paris, Les Éditions du CERF, 1996.

Plotkin, Mariano Ben. Freud in the Pampas. The emergence and development of a psychoanalytic culture in Argentina. Stanford, Stanford University Press, 2001.

Russo, Jane. O mundo Psi no Brasil. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editora, 2002.