As emissárias da morte

A capacidade que as células cancerosas possuem de migrar e formar novos tumores em outros locais do organismo é uma das principais responsáveis pelas dificuldades que a medicina enfrenta no combate a esta doença. Agora, uma pesquisa publicada em dezembro passado na afamada Nature e encabeçada por David Lyden, da Universidade americana de Cornell, lança uma nova luz sobre esse enigma.

O câncer é causado por mutações genéticas que permitem que as células, agora livres dos controles do organismo, possam se reproduzir de forma descontrolada, alterando a estrutura de seu tecido. Estas células transformadas induzem a formação de vasos sanguíneos para receberem nutrientes e oxigênio, além de terem acesso a vias de fuga para que possam se estabelecer em outros locais, formando um tumor secundário – esse fenômeno é chamado de metástase.
 

O esquema representa a formação de metástases: as células tumorais multiplicam-se descontroladamente e invadem outros locais do organismo por meio dos vasos sanguíneos e linfáticos (não mostrados no esquema). Nesses locais, essas células darão origem a novos tumores, conhecidos como metástases.

Durante a fase inicial do câncer, ocorre um acirrado combate entre nossas defesas imunes e as células tumorais. Normalmente, a maior parte dessas células, senão todas, são destruídas. No exato momento em que você está lendo este texto, podem estar ocorrendo em seu organismo diversas batalhas como essa. Mas fique tranqüilo: o resultado desta disputa, na imensa maioria das vezes, é a destruição das células transformadas.

 
A migração das células tumorais para outros locais dificulta a ação do sistema imune e, conseqüentemente, a sua eliminação. O surgimento de metástases é o principal fator relacionado com mortes por câncer e, por esse motivo, alguns tumores são extremamente perigosos. A maioria dos tumores que geram metástases age de uma forma direcionada. Isto é, as células desprendidas do tumor primário tendem a se fixar em locais preferenciais.
 
Inicialmente, acreditava-se que a migração e colonização de outros sítios eram casuais ou que fossem direcionadas pelos vasos sanguíneos do tumor primário. Agora, a pesquisa liderada por Lyden mostrou que um grupo especifico de células presente na medula óssea está envolvido na determinação dos locais das futuras metástases.

Imagens do pulmão de camundongo obtidas com microscópio. Os pontos verdes correspondem às células da medula óssea, e os vermelhos, às células tumorais. As outras células do pulmão estão marcadas em azul (fotos: reprodução / Nature ).

Em seus experimentos, Lyden e colaboradores substituíram as células da medula óssea de camundongos por outras que apresentavam uma proteína fluorescente verde. Posteriormente, os animais receberam injeções com células tumorais que sintetizavam uma proteína fluorescente vermelha.

As proteínas fluorescentes permitiram rastrear os dois tipos de células: células derivadas da medula óssea, que sintetizavam proteínas verdes, foram observadas nos pulmões entre 12 e 14 dias após as injeções. Já as células tumorais, que produziam proteínas vermelhas, foram observadas ali 18 dias depois. As metástases do câncer surgido na medula óssea apareceram no pulmão 23 dias após as injeções. Cerca de 90% dos tumores ocorreram nos locais em que as células vindas da medula óssea haviam se fixado.

O grupo de Lyden mostrou que um grupo de células não transformadas da medula óssea é estimulado pelo tumor e se dirige para os vasos sangüíneos. Posteriormente, estas “células emissárias” associam-se a outras, presentes nas regiões em que serão formados os tumores secundários. Para isso, as células no sítio de metástase produzem uma proteína denominada fibronectina, que auxilia na fixação das células vindas da medula óssea. Neste local forma-se uma espécie de sítio, ou nicho, que será posteriormente ocupado pelas células tumorais que tenham migrado até o local. Esse nicho irá proporcionar um local para as células tumorais se fixarem e uma fonte de nutrientes para a sua subsistência e multiplicação.
 
O estudo mostra ainda que fatores liberados pelos tumores determinam a localização futura das células emissárias. Há uma grande diminuição no número de metástases formadas quando essas células são eliminadas, impedidas de deixarem a medula óssea ou de se incorporarem nos nichos. Análises realizadas em pacientes com tumores de mama, pulmão e esôfago indicaram a presença das células emissárias em metástases.
 
No futuro, poderemos desenvolver formas de avaliar a probabilidade de surgimento de tumores secundários por meio da identificação das células emissárias presentes no sangue. Isso poderá ser utilizado como um sinal para a utilização de tratamentos preventivos contra a recorrência do câncer, levando-nos a vencer mais batalhas em nossa guerra contra essa doença. 

Jerry Carvalho Borges
Universidade do Texas em San Antonio
(pós-doutorando)
17/02/2006