Um dos momentos mais marcantes da época de faculdade aconteceu quando vi pela primeira vez uma ‘cultura de células’. Foi em 1990, durante uma aula de biologia celular com a professora Narcisa Cunha-e-Silva, do Instituto de Biofísica da UFRJ.
Fiquei fascinado com aquela garrafa plástica repleta de células HeLa, isoladas de Henrietta Lacks, uma mulher que havia falecido nos Estados Unidos em 1951. Independentemente da especialização que seguisse, decidi que iria trabalhar com ‘as menores porções da matéria viva que conhecemos’.
O cultivo celular permite a produção de vacinas, hormônios e medicamentos contra o câncer. Mais recentemente, a evolução das técnicas de cultura possibilitou o isolamento das linhagens de células-tronco embrionárias humanas. Tais células, derivadas pela primeira vez em 1998, vem sendo utilizadas como modelo de estudo do desenvolvimento do corpo humano e de diversas doenças.
O sucesso do uso de células-tronco embrionárias como ferramenta experimental e também em medicina regenerativa depende de sua capacidade de crescer e se multiplicar de modo que mantenha as mesmas características.
Em cultura, as células-tronco embrionárias se dividem em média a cada 20 horas e é justamente durante o ciclo celular que alterações em seu genoma podem comprometer suas funções normais.
Uma das modificações mais dramáticas que se pode observar no material genético de uma célula chama-se aneuploidia. Há mais de 100 anos, Theodor Boveri descreveu o fenômeno após analisar em detalhes a fertilização de ovos de ouriço.
Quando um ovo era fecundado simultaneamente por dois espermatozoides, Boveri testemunhou que as células geradas possuíam diferentes combinações de cromossomos. Diante dessa observação, o cientista alemão propôs que a aneuploidia (perda ou ganho de cromossomos) estaria associada a condições patológicas.
Apesar de hoje sabermos que não é sempre assim, ou seja, que a aneuploidia não está exclusivamente associada a doenças, o fenômeno é mais estudado no contexto do câncer (Leia coluna do neurocientista Roberto Lent sobre tema relacionado).
De fato, a maioria dos cânceres apresenta algum tipo de aneuploidia, o que traz vantagens adaptativas para seu crescimento e resistência. Apesar disso, não é sabido se o fenômeno representa a causa ou a consequência das transformações malignas.
Caçando anomalias
Evidências recentes sugerem que células-tronco embrionárias se comportam em cultura como mosaicos formados por células com diferentes números de cromossomos. O problema passa a existir quando clones com aneuploidias específicas passam a dominar o pedaço.
Um artigo científico publicado esta semana na revista Nature Biotechnology identificou quais as principais anomalias genéticas presentes em células-tronco embrionárias humanas cultivadas por períodos curtos e longos.
Cento e vinte e cinco linhagens de células-tronco embrionárias derivadas por 38 laboratórios de todo o mundo foram analisadas. As células conhecidas como BR-1 e isoladas por Ana Fraga e Lygia V. Pereira na Universidade da São Paulo estavam nessa lista.
Os autores descrevem que o ganho dos cromossomos 1, 12, 17 ou 20 ocorre em 1/3 das células e que a incidência dessas aneuploidias aumentava ao longo do tempo em cultura.
Dentre as alterações descritas, o ganho do cromossomo 20 foi a mais marcante. Nesse cromossomo, encontra-se o gene BCL2L1, sabidamente envolvido com a regulação do processo de morte celular, o que se traduz em vantagem adaptativa para o crescimento de células com três cópias desse cromossomo.
Fenômeno semelhante é observado em algumas formas de câncer, o que indica que esses dois tipos celulares possuem estratégias semelhantes para a sobrevivência em cultura.
Vale ressaltar que a região do cromossomo 20 onde se localiza o gene BCL2L1 é caracterizada por uma maior susceptibilidade a rearranjos e anomalias.
Veja como ocorre a aneuploidia no processo de divisão celular
Crescer, se transformar ou morrer?
Em outras palavras, o maior risco para alterações numa região do DNA onde há um gene sabidamente associado à sobrevivência pode explicar por que clones de células desse determinado perfil genético podem surgir em maior número na cultura.
A identificação de mudanças genéticas em células-tronco embrionárias humanas e dos mecanismos que levam ao crescimento de clones específicos permitirá minimizar o impacto dessas variantes na medicina regenerativa.
Tais observações nos ajudarão também a entender como essas células decidem entre crescer, se transformar num tipo celular mais especializado ou simplesmente morrer.
A chance que tive de olhar no microscópio células HeLa ainda como calouro do curso de ciências biológicas da UFRJ definiu em grande parte o rumo de minha carreira profissional de forma que atualmente eu utilize culturas de células como principal ferramenta de trabalho.
Stevens Rehen
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro