As muitas faces e facetas de Darwin

Outro título mais descritivo para este artigo seria “Quatro artigos e uma exposição”, com a devida vênia de Mike Newell, diretor de Quatro casamentos e um funeral, grande filme de 1994.

Charles Darwin nasceu em 12 de fevereiro de 1809 (exatamente no mesmo dia que Abraham Lincoln). Em torno das comemorações de 200 anos do seu natalício, dezenas de exposições foram organizadas e centenas e centenas de artigos científicos e de divulgação foram escritos em todo o mundo.

De forma geral, tanto as exposições quanto os artigos caíram no mesmo lugar comum e usaram os mesmos clichês de sempre, contando as mesmas velhas estórias, sem adicionar muita informação ao retrato intelectual que temos desse ícone sagrado da ciência moderna.

Mas quatro artigos e uma exposição se destacaram dessa mesmice, iluminando ângulos e ressaltando aspectos especiais de Darwin como pessoa, como pensador e como cientista.

A grande ideia de Darwin

A exposição ”Darwin, a grande ideia”, fica no Museu de História Natural de Londres até 19 de abril de 2009. Ela está bombasticamente anunciada como a maior exposição já feita sobre Darwin.

Fui ver, duas semanas atrás, a exposição “Darwin, a grande ideia”, no Museu de História Natural de Londres. O que achei especialmente comovente nessa mostra é o que ela revela sobre a faceta humana do grande cientista. Lá, vimos a reconstituição do local de trabalho de Darwin e, sobretudo, seus livros de anotação.

A imagem que emerge não é a de um homem genial em seus saltos de raciocínio, nem um cientista de grandes momentos de eureca. Pelo contrário, podemos captar a imagem de um pesquisador metódico, sempre coletando e armazenando com cuidado seus espécimes e anotando tudo com grande capricho e atenção. Assim, o triunfo de Darwin não é o de um gênio sobre-humano, como um Mozart, mas sim, o triunfo do homem comum, trabalhador assíduo, humano, muito humano.

Darwin: magistrado e cientista cético
Outras personas menos conhecidas de Darwin foram reveladas em um excelente artigo do historiador de ciência americano Richard Milner com o título “Charles Darwin: ghostbuster, muse and magistrate” [Charles Darwin: caça-fantasmas, inspiração e magistrado], publicado no número especial de 2009 do The Linnean. Como o nome indica, esse periódico é publicado pela Linnean Society de Londres, onde em 1858 Darwin e Alfred Russell Wallace (1823-1913) publicaram suas primeiras comunicações sobre a teoria de evolução por seleção natural, um ano antes da publicação da Origem das espécies.

Milner descreve como Darwin, na qualidade de aristocrata rural no condado de Kent, assume em 1857 a função em tempo parcial de magistrado da vara de pequenas causas da cidade de Bromley. A maior parte dos casos julgados por Darwin envolvia brigas domésticas, embriaguez, brigas de bar e invasão de propriedades de caça (ver figura). Aparentemente, Darwin era um juiz bastante leniente, mas inflexível com relação a um crime que ele não tolerava: crueldade com animais.

Publicação de 1860 do jornal Bromley Record, descrevendo alguns casos julgados pelo meritíssimo juiz Charles R. Darwin. Figura extraída e modificada do artigo de Richard Milner, citado no texto.

Milner descreve também como Darwin, um cientista e homem racional, tinha ojeriza aos espiritualistas que abundavam na Inglaterra e exploravam as pessoas cujos familiares haviam recentemente falecido. No julgamento em 1876 de um médium famoso, Henry Slade, que teve grande repercussão na imprensa, Darwin fez contribuições financeiras secretas para ajudar a promotoria.

Esse caso apresentou um detalhe interessante: uma das testemunhas da defesa era ninguém outro que o próprio Alfred Russell Wallace, que havia se encantado com o espiritualismo. Assim, os dois maiores naturalistas da Inglaterra tomaram lados opostos na batalha contra a aceitação de fenômenos sobrenaturais.

Darwin sob a luz da genômica
Vou plagiar uma coluna antiga para recontar que, no início do século 20, foi percebida uma certa incongruência entre o mendelismo, que definia os caracteres hereditários como descontínuos, discretos, e o darwinismo, que postulava a evolução com base em variações contínuas e graduais desses caracteres. A solução deste problema – ou seja, a síntese entre Darwin e Mendel – ocorreu pelo esforço de Ronald Fisher, JBS Haldane e Sewall Wright na década de 1920. A essa compatibilização entre Darwin e Mendel deram-se os nomes de “teoria sintética da evolução”, “síntese moderna” ou neodarwinismo.

Agora, na era pós-Projeto Genoma Humano, temos de reexaminar a evolução darwiniana sob a luz do novo conhecimento genômico. Uma tentativa nesse sentido foi feita em uma brilhante revisão do bioinformata Eugene V. Koonin, publicada no periódico Nucleic Acids Research.

O artigo tem 24 páginas e seria impossível tentar sumarizar todos os seus pontos aqui. Recomendo que os leitores interessados dediquem tempo a ele, pois vale a pena! Entretanto, posso adiantar aqui um dos parágrafos de conclusão, em minha tradução:

“O panorama emergente de evolução genômica inclui a seleção natural darwiniana como componente importante, mas é muito mais pluralista e complexo do que o dogma de Darwin que foi solidificado pela síntese moderna.

A maioria das sequências [de DNA] em todos os genomas evolui sob a pressão da seleção purificadora e, em organismos com os maiores genomas, neutramente, com apenas uma pequena fração das mutações de fato sendo benéficas e fixadas por seleção natural, como entrevisto por Darwin. Além disso, a contribuição relativa de diferentes forças evolucionárias varia muito entre linhagens de organismos, primariamente por causa de diferenças em estrutura populacional.

A genômica evolucionária efetivamente demoliu o conceito ortodoxo de Árvore da Vida pela revelação do caráter reticulado e dinâmico da evolução, onde a transferência horizontal de genes, fusão de genomas e interação entre genomas de formas de vida e diversos elementos egoístas tomam o papel principal. Nessa visão dinâmica, cada genoma é um palimpsesto, uma coleção diversa de genes com diferentes destinos evolucionários e probabilidades distintas de serem perdidos, transferidos ou duplicados. Assim, a Árvore da Vida torna-se uma rede, mais apropriadamente, uma Floresta da Vida, constituída de árvores, arbustos, emaranhados de cipós e, certamente, inúmeros troncos e galhos mortos.”

Que cenário interessante e que transformação brilhante da pobre visão do neodarwinismo clássico. Talvez nesse ponto o leitor queira relembrar alguns dos conceitos de organização genômica que apresentamos alguns tempos atrás.

Darwin aos 200 anos
Um terceiro, breve e fascinante artigo foi publicado no Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA (PNAS) pelos dois grandes evolucionistas americanos Francisco Ayala e John Avise (o pai da filogeografia). Os autores citam um trecho da autobiografia de Darwin (publicada em 1887):

“O velho argumento de desenho na natureza proposto por Paley, que anteriormente me parecia tão conclusivo, cai agora que a lei de seleção natural foi descoberta. Não podemos mais argumentar que, por exemplo, o lindo ligamento de uma concha bivalve deva ter sido feito por um ser inteligente, como a dobradiça de uma porta pelo homem.”
É incrível pensar que hoje, 122 anos depois, os mesmo velhos e cansados argumentos de Paley continuam sendo usados sob a rubrica de “desenho inteligente”, promovido pelas religiões fundamentalistas, cegas às evidências que nos rodeiam.

Os autores terminam o artigo com a seguinte exortação: “Ao mesmo tempo em que os biólogos comemoram “dois séculos de Darwin” com inúmeros festivais e colóquios durante 2009, lembremos que a melhor maneira de celebrar o trabalho de Darwin é através de um compromisso enérgico para esclarecer o público sobre a evolução.”

Parentesco humano e raças

Os argumentos do geneticista indo-americano Aravinda Chakravarti sobre raças humanas, expostos em artigo na Nature, se alinham com as ideias do colunista sobre o tema, apresentadas em vários artigos de “Deriva genética” e sintetizadas no livro recém-lançado Humanidade sem raças?.

O ultimo artigo que quero discutir aqui hoje foi publicado na Nature em janeiro deste ano e assinado pelo geneticista indo-americano Aravinda Chakravarti, que substituiu o saudoso Victor McKusick (1921-2008) como professor de genética médica da Universidade Johns Hopkins. Sabe o leitor por que eu gostei tanto desse pequeno artigo? Por razões narcisísticas – ele concorda 100% com minhas ideias! Vejam só estas conclusões:

“Entretanto, o quadro que emerge dos estudos genéticos é que nós somos todos multirraciais, relacionados uns com os outros em um maior ou menor grau. […] Uma visão da humanidade mais clara e com menos viés emergiria se os geneticistas focalizassem indivíduos, ao invés de populações. […] Isso seria tremendamente excitante. Mais frequentemente a nossa visão de sociedade modelou a ciência, ao invés do contrário. Agora, é tempo de a ciência moldar a visão da sociedade. Pela desconstrução das nossas noções de raça e população, podemos apreciar melhor a nossa história recente comum e, talvez, mais importante, o nosso futuro compartilhado.”
Parece até o Sérgio Pena falando, não? Essas exatas ideias estão expostas no meu livro Humanidade sem raças? .

A propósito, não deixem de conferir o artigo e vídeo publicados na Ciência Hoje On-line (clique aqui para acessar) a respeito do criativo e interessante cordel sobre esse meu livro, de autoria de Maria da Saúde da Silva, aluna do curso de pós-graduação em história afro-brasileira e indígena da Universidade de Pernambuco (UPE). 


Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
13/03/2009