Charles Darwin nasceu em 12 de fevereiro de 1809 (exatamente no mesmo dia que Abraham Lincoln). Em torno das comemorações de 200 anos do seu natalício, dezenas de exposições foram organizadas e centenas e centenas de artigos científicos e de divulgação foram escritos em todo o mundo.
De forma geral, tanto as exposições quanto os artigos caíram no mesmo lugar comum e usaram os mesmos clichês de sempre, contando as mesmas velhas estórias, sem adicionar muita informação ao retrato intelectual que temos desse ícone sagrado da ciência moderna.
Mas quatro artigos e uma exposição se destacaram dessa mesmice, iluminando ângulos e ressaltando aspectos especiais de Darwin como pessoa, como pensador e como cientista.
A grande ideia de Darwin
A exposição ”Darwin, a grande ideia”, fica no Museu de História Natural de Londres até 19 de abril de 2009. Ela está bombasticamente anunciada como a maior exposição já feita sobre Darwin.
A imagem que emerge não é a de um homem genial em seus saltos de raciocínio, nem um cientista de grandes momentos de eureca. Pelo contrário, podemos captar a imagem de um pesquisador metódico, sempre coletando e armazenando com cuidado seus espécimes e anotando tudo com grande capricho e atenção. Assim, o triunfo de Darwin não é o de um gênio sobre-humano, como um Mozart, mas sim, o triunfo do homem comum, trabalhador assíduo, humano, muito humano.
Darwin: magistrado e cientista cético
Outras personas menos conhecidas de Darwin foram reveladas em um excelente artigo do historiador de ciência americano Richard Milner com o título “Charles Darwin: ghostbuster, muse and magistrate” [Charles Darwin: caça-fantasmas, inspiração e magistrado], publicado no número especial de 2009 do The Linnean. Como o nome indica, esse periódico é publicado pela Linnean Society de Londres, onde em 1858 Darwin e Alfred Russell Wallace (1823-1913) publicaram suas primeiras comunicações sobre a teoria de evolução por seleção natural, um ano antes da publicação da Origem das espécies.
Milner descreve como Darwin, na qualidade de aristocrata rural no condado de Kent, assume em 1857 a função em tempo parcial de magistrado da vara de pequenas causas da cidade de Bromley. A maior parte dos casos julgados por Darwin envolvia brigas domésticas, embriaguez, brigas de bar e invasão de propriedades de caça (ver figura). Aparentemente, Darwin era um juiz bastante leniente, mas inflexível com relação a um crime que ele não tolerava: crueldade com animais.
Publicação de 1860 do jornal Bromley Record, descrevendo alguns casos julgados pelo meritíssimo juiz Charles R. Darwin. Figura extraída e modificada do artigo de Richard Milner, citado no texto.
Esse caso apresentou um detalhe interessante: uma das testemunhas da defesa era ninguém outro que o próprio Alfred Russell Wallace, que havia se encantado com o espiritualismo. Assim, os dois maiores naturalistas da Inglaterra tomaram lados opostos na batalha contra a aceitação de fenômenos sobrenaturais.
Darwin sob a luz da genômica
Vou plagiar uma coluna antiga para recontar que, no início do século 20, foi percebida uma certa incongruência entre o mendelismo, que definia os caracteres hereditários como descontínuos, discretos, e o darwinismo, que postulava a evolução com base em variações contínuas e graduais desses caracteres. A solução deste problema – ou seja, a síntese entre Darwin e Mendel – ocorreu pelo esforço de Ronald Fisher, JBS Haldane e Sewall Wright na década de 1920. A essa compatibilização entre Darwin e Mendel deram-se os nomes de “teoria sintética da evolução”, “síntese moderna” ou neodarwinismo.
Agora, na era pós-Projeto Genoma Humano, temos de reexaminar a evolução darwiniana sob a luz do novo conhecimento genômico. Uma tentativa nesse sentido foi feita em uma brilhante revisão do bioinformata Eugene V. Koonin, publicada no periódico Nucleic Acids Research.
O artigo tem 24 páginas e seria impossível tentar sumarizar todos os seus pontos aqui. Recomendo que os leitores interessados dediquem tempo a ele, pois vale a pena! Entretanto, posso adiantar aqui um dos parágrafos de conclusão, em minha tradução:
A maioria das sequências [de DNA] em todos os genomas evolui sob a pressão da seleção purificadora e, em organismos com os maiores genomas, neutramente, com apenas uma pequena fração das mutações de fato sendo benéficas e fixadas por seleção natural, como entrevisto por Darwin. Além disso, a contribuição relativa de diferentes forças evolucionárias varia muito entre linhagens de organismos, primariamente por causa de diferenças em estrutura populacional.
A genômica evolucionária efetivamente demoliu o conceito ortodoxo de Árvore da Vida pela revelação do caráter reticulado e dinâmico da evolução, onde a transferência horizontal de genes, fusão de genomas e interação entre genomas de formas de vida e diversos elementos egoístas tomam o papel principal. Nessa visão dinâmica, cada genoma é um palimpsesto, uma coleção diversa de genes com diferentes destinos evolucionários e probabilidades distintas de serem perdidos, transferidos ou duplicados. Assim, a Árvore da Vida torna-se uma rede, mais apropriadamente, uma Floresta da Vida, constituída de árvores, arbustos, emaranhados de cipós e, certamente, inúmeros troncos e galhos mortos.”
Darwin aos 200 anos
Um terceiro, breve e fascinante artigo foi publicado no Proceedings of the National Academy of Sciences of the USA (PNAS) pelos dois grandes evolucionistas americanos Francisco Ayala e John Avise (o pai da filogeografia). Os autores citam um trecho da autobiografia de Darwin (publicada em 1887):
Os autores terminam o artigo com a seguinte exortação: “Ao mesmo tempo em que os biólogos comemoram “dois séculos de Darwin” com inúmeros festivais e colóquios durante 2009, lembremos que a melhor maneira de celebrar o trabalho de Darwin é através de um compromisso enérgico para esclarecer o público sobre a evolução.”
Parentesco humano e raças
Os argumentos do geneticista indo-americano Aravinda Chakravarti sobre raças humanas, expostos em artigo na Nature, se alinham com as ideias do colunista sobre o tema, apresentadas em vários artigos de “Deriva genética” e sintetizadas no livro recém-lançado Humanidade sem raças?.
O ultimo artigo que quero discutir aqui hoje foi publicado na Nature em janeiro deste ano e assinado pelo geneticista indo-americano Aravinda Chakravarti, que substituiu o saudoso Victor McKusick (1921-2008) como professor de genética médica da Universidade Johns Hopkins. Sabe o leitor por que eu gostei tanto desse pequeno artigo? Por razões narcisísticas – ele concorda 100% com minhas ideias! Vejam só estas conclusões:
A propósito, não deixem de conferir o artigo e vídeo publicados na Ciência Hoje On-line (clique aqui para acessar) a respeito do criativo e interessante cordel sobre esse meu livro, de autoria de Maria da Saúde da Silva, aluna do curso de pós-graduação em história afro-brasileira e indígena da Universidade de Pernambuco (UPE).
Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
13/03/2009