Mas essa história precisa ser mais bem explicada, claro: não estou me referindo ao voto feminino, da maneira como foi definido pelo Código Eleitoral de 1932 e depois ratificado pela Constituição de 1934. Refiro-me às irmandades de “pretos” do século 18, onde as mulheres conquistaram, após muita discussão, o direito de participar do processo interno de tomada de decisões da irmandade, organizado por meio do voto.
Parece pouca coisa, mas não é: na sociedade colonial, onde não havia cidadãos, mas súditos do rei, e sequer se pensava em lutar por direitos políticos, é um bocado importante pensar que um grupo de mulheres reivindicou – e conseguiu – participar das práticas eleitorais de uma associação.
Quem chamou a atenção para esse aspecto da história das irmandades no Brasil colonial foi a antropóloga e historiadora Mariza de Carvalho Soares, professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), no livro Devotos da cor: identidade étnica, religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro, século 18 (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2000). Nessa obra, Mariza analisa a incrível história da Irmandade de Santo Elesbão e Santa Ifigênia, cuja igreja, construída na rua da Alfândega, em pleno centro do Rio de Janeiro, está lá até hoje.
Associações de escravos
Naquela época, as irmandades eram uma das poucas formas de associação permitidas a escravos africanos. As irmandades eram associações de leigos, que realizavam cerimônias religiosas em espaços privados ou em igrejas construídas por eles. As regras de cada irmandade eram escritas, e as atas de reunião também. Geralmente, os assuntos discutidos eram a administração da morte, bem como o gerenciamento e aplicação de recursos em funerais, festas e auxílio aos membros necessitados.
Os membros da irmandade decidiam questões comuns e disputavam recursos, como em qualquer associação. A diferença era que, em geral, as mulheres só participavam dessas associações como esposas. Em Portugal, era assim com a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário do Mosteiro de São Domingos: só as mulheres casadas com membros da irmandade podiam se filiar. No Brasil, não; nas chamadas irmandades de “homens pretos”, as mulheres se filiavam independentemente de seu vínculo com os homens.
Elas se filiavam e pagavam mas, no início, não votavam nem podiam ser eleitas para a diretoria. (Como em qualquer agremiação, nessas também havia diretoria.) A diretoria – ou Mesa da Irmandade – era formada por 12 homens em 1740, eleita pelo conjunto dos membros.
Inicialmente, as mulheres, mesmo filiadas e contribuindo financeiramente, não tinham participação nas decisões. Com o tempo, porém, elas não só passaram a votar como a ser elegíveis, podendo ser “juízas” e “irmãs de mesa”, cargos de diretoria, que tinham altas esmolas (pagamentos) como condição para seu exercício. Em meados do século 18, a diretoria passou a ser formada por 12 homens e 12 mulheres, em igualdade de condições.
Dinheiro e prestígio
A questão interessante aqui é que provavelmente as mulheres conquistaram o direito de voto e de representação porque tinham meios de pagar esmolas na mesma proporção que os homens. O que nos leva a mais um aspecto interessante da vida de muitas dessas mulheres africanas que vieram parar no Brasil no período colonial: várias conseguiam acumular algum dinheiro, que usavam para se alforriar e para ocupar posições de prestígio no meio onde viviam.
Passeata de sufragettes – ativistas em defesa do voto feminino – em Nova York em 1912. O direito ao foto só seria conquistado em definitivo pelas mulheres dos Estados Unidos em 1920 (foto: Library of Congress).
Votar e ser votado na irmandade era um de seus privilégios. Porém, como esta era uma prerrogativa exclusiva das mulheres “pretas”, africanas, aqui está: na prática, elas foram as primeiras a conquistar e a exercer o direito de voto no Brasil, dentro daquilo que podemos chamar de “direitos de voto” nesse período.
Em tempo: O Brasil se orgulha de ter sacramentado o voto feminino muito antes de vários países, como a vizinha Argentina (1947) ou mesmo a França (1944), e é coisa para se orgulhar mesmo. O que pouca gente sabe é que perdemos a chance de sermos o primeiro país do mundo a estender o direito de voto às mulheres. Quem ostenta o título é a Nova Zelândia, onde as mulheres votam desde 1893.
No Brasil, a questão foi intensamente discutida em 1891, logo após a proclamação da República. Na ocasião, apesar da defesa veemente de vários deputados, houve quem dissesse, como o fez o deputado Coelho Campos, que era “assunto de que não cogito; o que afirmo é que minha mulher não irá votar”. Ele provavelmente não sabia, mas estava mais desatualizado do que podia imaginar!
Keila Grinberg
Departamento de História
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
13/03/2009