Bebês prematuros, até recentemente, eram por norma deixados sozinhos em incubadeiras, separados da mãe. Parecia um contra-senso, depois de nove meses no aconchego do ventre, e de fato a prática mostrava que algo não estava muito certo: apesar de receberem cuidados médicos, alimento, oxigênio e calor, esses bebês tinham problemas de desenvolvimento e demoravam a receber alta e ir para casa.
Até que alguém resolveu permitir que as mães ficassem por perto, acariciando suas crias. A mudança foi drástica: os bebês subitamente cresciam, tinham mais saúde e iam para casa em menos tempo. Hoje se conhece a explicação: o cérebro, que possui um sistema especializado em detectar carícias , parece interpretar a falta de toques e carinhos como sinal gritante da ausência de alguém que cuide do bebê, e aciona uma resposta generalizada de estresse, com liberação de hormônios glicocorticóides. Em conseqüência, corpo e cérebro saem do modo ’desenvolvimento/ crescimento’, entram no modo ’sobrevivência’, armazenando reservas, e dele só saem quando o cérebro detectar carinhos que indicam que alguém começa a se ocupar do bebê.
Mas os benefícios do carinho vão além de permitir o desenvolvimento tranqüilo do bebê. Michael Meany, da Universidade McGill, no Canadá, mostrou no final dos anos 1990 que ratos que são devidamente lambidos por suas mães durante a primeira semana de vida tornam-se adultos mais tranqüilos, pouco medrosos e com respostas hormonais e comportamentais de estresse mais controladas do que ratos criados por mães-ratas pouco carinhosas.
A alteração parece ser intermediada por um mecanismo de auto-regulação do hipocampo, que detecta a presença de hormônios de estresse e impede que a resposta de estresse aumente ainda mais. E mais: ratas que foram bastante lambidas pela mãe quando bebês tendem a se tornar mães igualmente chegadas a lamber a cria.
Claro que ratas carinhosas poderiam ter filhas tranqüilas, pouco medrosas, pouco estressadas e carinhosas com seus próprios filhotes por razões puramente genéticas. Mas experimentos com mães-rato adotivas mostraram que o determinante é o comportamento da mãe, biológica ou não. Seja lambido e você lamberá sua cria também, que por sua vez também lamberá a cria dela — mesmo que alguém tenha trocado você de família.
E aqui vêm duas grandes perguntas. Se todo mundo aprende na escola e nas aulas de evolução que somente os genes são passados adiante, como explicar (1) que ratas que foram bem lambidas pela mãe adotiva ’herdam’ dela o gosto por lamber sua cria, e (2) que os efeitos benéficos de uma semana de lambidas maternas duram até a vida adulta?
Uma explicação única para as duas observações está em uma transmissão entre gerações não genômica, isto é, não limitada ao DNA, de caracteres adquiridos ao longo da vida relacionados à resposta de estresse. Soa herético à primeira vista, pois era o que Lamarck dizia ao propor que as girafas que ganhavam longos pescoços de tanto esticá-los para alcançar as folhas mais altas passavam essa característica adiante à sua prole. Mas a própria genética — e o próprio Meaney — explica, em estudo publicado 27 de junho na revista Nature Neuroscience.
Ser lambido pela mãe provoca nos bebês-rato um aumento na liberação de serotonina no cérebro, que leva a um aumento na produção de um fator neuronal de transcrição que, por sua vez, faz com que mais moléculas do receptor para glicocorticóides (os hormônios do estresse) sejam produzidas a partir do respectivo gene no hipocampo.
Com mais receptores para detectar a presença de glicocorticóides, o hipocampo cancela mais rapidamente a resposta de estresse e contribui para um comportamento mais tranqüilo e menos estressado dos animais. Mas como essa mudança seria permanente, ou ainda transmitida à prole?
A permanência fica por conta de alterações epigenômicas, segundo Meaney e sua equipe. Graças a uma série de técnicas modernas de genética molecular, eles demonstraram que os carinhos maternos provocam alterações não no genoma (a seqüência de bases do DNA), mas no tal do epigenoma (coloque mais esta palavra no seu vocabulário, ela promete aparecer cada vez mais: são as moléculas de cromatina enoveladas ao redor do DNA, e acréscimos de radicais metila dependurados ao próprio DNA).
Essas alterações modificam o quanto o DNA da célula fica acessível para leitura. No caso dos animais lambidos pelas mães, alterações epigenômicas deixam o gene para o receptor de glicocorticóide mais acessível ao fator de transcrição, e o resultado é a produção de um número maior de receptores — e uma resposta de estresse mais controlada.
Alterações epigenômicas são estáveis até que a célula entre em divisão, quando o DNA precisa ser totalmente desenrolado para duplicação. Como neurônios por definição não se dividem mais, alterações no seu epigenoma provocadas em última análise por lambidas maternas serão carregadas pelo resto da vida. E serão passadas adiante por um mecanismo igualmente epigenômico, mas que poderia até se chamar transgenômico: por reduzir a resposta de estresse, a própria alteração contribui para o comportamento carinhoso com a cria, que por sua vez é suficiente para produzir alteração semelhante nos filhotes. E assim uma característica não determinada pelo DNA passa a ser transmitida de mãe para filha.
Gostei. Acabo de ficar feliz por meus neurônios não se dividirem mais. E quem sabe assim o pessoal entende que não dá mais para continuar discutindo se o importante é a genética OU o ambiente: são os dois, e agora o ambiente pode até influenciar a (epi)genética. Contanto que não descubram que girafas que esticam o pescoço têm girafinhas com pescoço mais comprido…
Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia