Avanços e disparidades

Entre os dias 1 e 2 de outubro de 2012, o Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo, sediou evento do Instituto de Medicina Regenerativa da Califórnia, que reuniu especialistas em células-tronco e terapia celular do Brasil, da Argentina e da Califórnia. Foram quase 20 horas de discussões científicas e apresentações de resultados inéditos, alguns dos quais eu terei o privilégio de compartilhar aqui com os leitores.

Em virtude do espaço limitado da coluna, poderei destacar somente os quatro trabalhos que mais me impressionaram dentre os 33 apresentados ao longo do evento. Não foi tarefa fácil escolhê-los.

Apesar da boa qualidade dos projetos brasileiros e argentinos, a pesquisa sobre células-tronco realizada na Califórnia está num nível de complexidade muito além do que conseguimos fazer por aqui.

Passos promissores

Brian Cummings, da Universidade da Califórnia, em Irvine, desenvolveu células-tronco neurais humanas com a capacidade de recuperar o cérebro danificado por lesão traumática cerebral em modelos animais. Segundo Cummings, a lesão traumática cerebral é uma epidemia silenciosa que afeta quase dois milhões de pessoas anualmente nos Estados Unidos. Normalmente causada por armas de fogo, acidentes no trânsito e quedas, traz prejuízos irreparáveis ao funcionamento do cérebro.

O trabalho vem sendo realizado em parceira com a empresa americana Stem Cells Inc. e a Universidade de Zurique. Será o transplante de células-tronco neurais humanas capaz de reverter as perdas associadas à lesão traumática cerebral? Os testes clínicos terão início em 2013 nos Estados Unidos.

Será o transplante de células-tronco neurais humanas capaz de reverter as perdas associadas à lesão traumática cerebral?

Larry Couture é vice-presidente do centro para desenvolvimento de tecnologia aplicada da City of Hope. O nome sugestivo define um dos principais centros de pesquisa privados do mundo, especializado na pesquisa, prevenção e tratamento do câncer e outras doenças como diabetes e HIV. A City of Hope já realizou mais de 10 mil transplantes de medula óssea e desenvolveu a insulina sintética humana em 1978.

A equipe de Larry Couture desenvolve tecnologia para a produção de grandes quantidades de células-tronco embrionárias e reprogramadas com o objetivo de utilizá-las em testes clínicos. A técnica desenvolvida pela equipe é inovadora e permite o cultivo de células pluripotentes como agregados flutuantes, sem a necessidade de estarem aderidas a uma placa ou qualquer outro substrato.

Um outro aspecto interessante do trabalho de Larry Couture é sua capacidade de captar doações para a City of Hope. Além de recursos estaduais e federais, a instituição recebe outros milhões de dólares por ano de cidadãos americanos que confiam nesse centro de pesquisa para a o desenvolvimento dos procedimentos médicos do futuro.

Joseph C. Wu é da Universidade de Stanford. Sua equipe criou cardiomiócitos (células que formam as fibras musculares cardíacas) a partir da reprogramação de células da pele de pacientes com cardiomiopatia dilatada. Esses pacientes sofrem de insuficiência cardíaca e vivem sob risco de morte prematura.

Wu confirmou que essas células apresentam os mesmos defeitos observados no coração dos pacientes e pretende agora testar medicamentos capazes de consertar tais defeitos. Os medicamentos que apresentarem bons resultados no laboratório serão depois testados nos próprios pacientes. Medicina personalizada da melhor qualidade. Sua equipe também pretende realizar os primeiros testes clínicos em seres humanos com cardiomiócitos gerados a partir de células reprogramadas da pele dos próprios indivíduos.

Rodrigo Brant é um pesquisador brasileiro, da Unifesp, que desenvolve parte de seu trabalho na Universidade do Sul da Califórnia. A equipe de Brant produziu células do epitélio pigmentar da retina a partir de células-tronco embrionárias humanas. Essas células, quando testadas em ratos e miniporcos, foram capazes de reverter cegueira causada por degeneração macular, uma doença degenerativa que causa perda progressiva da visão central e cegueira. 

Retina
Em estudo que conta com participação brasileira, pesquisadores conseguiram produzir células do epitélio pigmentar da retina a partir de células-tronco embrionárias humanas. Essas células foram capazes de reverter, em ratos e miniporcos, cegueira causada por degeneração macular. Na imagem, a macula está próxima ao centro da retina. (imagem: Wikimedia Commons).

O projeto ‘The California project to cure blindness’ é ousado e inspirador. A equipe desenvolveu ainda uma membrana onde as células do epitélio pigmentar são colocadas e esse conjunto membrana-células é então transplantado para o interior do olho, junto à retina. As células do epitélio pigmentar criadas em laboratório, quando transplantadas, evitam a morte dos fotorreceptores e a perda da visão. Os testes de segurança começarão ano que vem nos Estados Unidos com 15 pacientes.

Distintas condições, distintas contribuições

Os motivos para esse evidente distanciamento científico e tecnológico são fáceis de entender. O montante de recursos disponíveis para as pesquisas sobre células-tronco no estado da Califórnia é de 295 milhões de dólares por ano, garantidos por 10 anos.

A Califórnia tem tradição no recrutamento dos mais brilhantes cientistas do mundo para os seus quadros e, com isso, possui massa crítica que, de forma organizada, busca responder as questões mais contemporâneas da medicina e das ciências biológicas.

Um outro aspecto interessante diz respeito ao tempo que leva para que um novo teste clínico seja aprovado. No Brasil, não é raro que um novo teste clínico precise aguardar um ano para que seu início seja autorizado. Nos Estados Unidos, esse tempo não ultrapassa um mês!

Isso sem contar que os cientistas da Califórnia não precisam esperar semanas ou meses por reagentes, que, na maioria das vezes, são entregues no mesmo dia em que são comprados.

A interação entre empresas e universidades é outro ponto forte na Califórnia. No Brasil, há um grande problema nesse sentido, visto que nossa Constituição proíbe a comercialização de produtos de natureza humana, incluindo células. Tal impedimento desestimula o interesse da iniciativa privada em investir em pesquisas sobre células-tronco no país. 

São diferenças que não devem desanimar aqueles que fazem pesquisa no Brasil, mas que explicam a discrepância entre o que é feito atualmente na Califórnia e o que fazemos aqui

São diferenças que não devem desanimar aqueles que fazem pesquisa no Brasil, mas que explicam a discrepância entre o que é feito atualmente na Califórnia e o que fazemos aqui ou na Argentina.

Cabe mencionar que, por iniciativas do Departamento de Ciência e Tecnologia, do Ministério da Saúde e das agências de fomento estaduais e federais, houve um investimento sem precedentes na área de terapia celular no Brasil nos últimos oito anos.

Além disso, pequenos ajustes no programa Ciência sem Fronteiras poderão promover a fixação de cientistas, atualmente no exterior, aqui no Brasil (hoje o percentual de bolsas para trazer cientistas de fora para o Brasil equivale a menos de 2% do total de bolsas do programa).

Como diria um velho mestre: “internacionalizar a ciência brasileira deveria ser internalizar a ciência internacional”. Quem sabe um dia não conseguiremos transformar o Brasil numa nova Califórnia?


Stevens Rehen
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro