Na última terça-feira (14/8), o Tribunal Regional Federal da 1ª Região determinou a paralisação das obras da usina hidrelétrica de Belo Monte, no rio Xingu (PA). A decisão foi tomada depois que o órgão identificou ilegalidades no processo de autorização da obra. Os juízes federais entenderam que as comunidades indígenas da região afetada não foram consultadas antes da aprovação da construção da hidrelétrica pelo Congresso, em 2005. E a obrigatoriedade da consulta aos índios em casos de projetos que afetem áreas indígenas está justamente prevista na Constituição.
Esse poderia ser só mais um episódio judicial da longa série que acompanha o projeto de Belo Monte desde seu início. Dessa vez, no entanto, qualquer recurso para contestar a paralisação das obras deverá ser apresentado ao Supremo Tribunal Federal (STF), que julga questões constitucionais.
Assim, o STF deve receber mais um calhamaço, que irá sobrecarregar mais ainda sua extensa pauta de votação. Isso porque o consórcio de empreiteiras e o governo atropelaram a lei, apostando no poder do fato consumado. O feitiço parece voltar-se contra os feiticeiros e também contra o contribuinte – afinal, paradas em obras aumentam os custos, e alguém pagará essa conta, mesmo que o aumento nao seja repassado às tarifas de energia.
Segundo a Norte Energia, empresa responsável pela construção da usina, a paralisação deve afetar também a execução das condicionantes previstas para compensar os impactos negativos da obra. A empresa já foi multada em R$ 7 milhões no início deste ano por descumprir condicionantes em 24 programas e projetos, como os de saúde e segurança, saneamento, acompanhamento das comunidades, atendimento social, monitoramento da qualidade da água e vários relativos à conservação da fauna.
Na semana passada, índios fizeram reféns engenheiros da Norte Energia, em protesto pelo não cumprimento das contrapartidas previstas. No mês passado, índios já haviam invadido o canteiro de obras de Belo Monte com a mesma reclamação, paralisando as atividades por cerca de 30 dias. Também em julho, índios araras e jurunas fizeram reféns três funcionários ligados à usina que foram apresentar a eles o plano de transposição do rio Xingu.
Projeto silencioso
As notícias sobre o projeto seguem, portanto, sendo veiculadas nas páginas de economia e de polícia dos jornais. Mas, para o leigo no assunto, é difícil entender os motivos de tanto desassossego. Uma das principais razões é a voluntária opacidade do projeto. Como em todo grande projeto, o silêncio é a regra. O cidadão médio sabe que o projeto é hidrelétrico, é grande, fica longe e está dando problemas com os índios e a Justiça, e ponto. Esquemas e mapas explicativos só começaram a ser publicados com a função de ilustrar as matérias sobre os percalços da obra, isso com a construção já iniciada.
Durante todo esse tempo, tivemos direito a intensa campanha de mídia louvando a grandeza e a sustentabilidade do projeto de geração de energia limpa. Isso permitiu que autoridades afirmassem em tom reconfortante que as áreas indígenas não serão alagadas. E é 100% verdade.
A maioria das áreas indígenas da região fica na chamada Volta Grande do Xingu, uma alça do rio de mais de 100 km que terá sua vazão drasticamente reduzida. Isso porque o projeto se baseia em desviar o rio por um atalho que emendará o início e o fim da Volta Grande, aproveitando o desnível entre esses dois pontos para gerar energia.
A solução, de fato, evita a formação de um grande reservatório rio acima e, portanto, reduz a área inundada. Mas, por outro lado, seca a Volta Grande. Pena que nesse longo trecho do Xingu exista um dos maiores arquipélagos fluviais do mundo, repleto de ilhas, canais, braços e lagos com megabiodiversidade e que são fonte de alimento e única via de transporte para as diversas etnias que habitam as suas margens.
Com a forte redução de vazão da Volta Grande, uma das mais belas paisagens do planeta poderá ser reduzida a um charco malcheiroso, criadouro de diversas mazelas infectocontagiosas e imprestável para pesca e navegação, deixando as aldeias sem opção de acesso.
Por isso mesmo, uma das muitas condicionantes do projeto é a construção de acessos terrestres às aldeias. Outra é a viabilização de algum mecanismo de transposição de pequenas embarcações na barragem do rio, mas nem os responsáveis pela obra sabem bem como será e se funcionará. Mal comparando, é como se fossem inutilizadas as avenidas marginais dos rios Pinheiros e Tietê, essenciais para o trânsito paulista, sem viabilizar uma alternativa. Seria insurreição na certa.
O acesso a Altamira – cidade que fica às margens do Xingu, rio acima do local onde será construída a barragem – pelos ribeirinhos e indígenas que vivem rio abaixo ficará prejudicado. E a própria cidade também pagará seu preço, uma vez que cerca de 5 mil pessoas serão deslocadas das áreas urbanas que o rio Xingu vai inundar.
Passado esquecido, futuro sombrio
Mas o cidadão que sabe pouco ou nada do projeto sabe menos ainda que ele já vem sendo gestado desde os anos 1970. Em sua versão inicial, era mais megalômano ainda: previa o triplo de usinas (seis, em vez de duas) e a inundação de 1.200 km2 de terras, contra os cerca de 500 km2 da versão atual.
Em 1989, grupos indígenas apoiados pelo cantor inglês Sting fizeram uma campanha mundial que obrigou o governo da época a bater em retirada e suspender o projeto. Hoje, todos lembram do apoio de Sting aos indígenas, mas ninguém lembra do motivo.
Mas, se é verdade que temos memória curta, não precisamos dela para compor o cenário futuro da região do projeto. Basta ter olhos e ouvidos e assistir ao atual cenário de outros grandes projetos hidrelétricos na região amazônica, como Jirau e Santo Antônio, em Rondônia, no curso do rio Madeira.
Para isso, nada melhor que a entrevista do professor da Universidade Federal de Rondônia Ari Miguel Teixeira Ott veiculada pelo Instituto Humanitas da Unisinos. O professor Ott, que é médico, mestre em antropologia e doutor em ciências humanas, tem olhos e ouvidos atentos e vive em Porto Velho há 30 anos. Expressa sua preocupação com projetos de tal envergadura em um rio geologicamente jovem, que ainda não encontrou seu leito definitivo: a cada enchente, desbarranca parte de suas margens e, a cada seca, forma praias de areia em lugares diferentes.
“Com a abertura das comportas de Santo Antônio a dinâmica do fluxo das águas do rio foi alterada de maneira inesperada e a margem direita do rio, a jusante das comportas, foi desbarrancada. Justamente na margem onde residem dezenas de famílias que tiveram que ser removidas às pressas e instaladas em hotéis e pousadas precárias (nota do colunista: Porto Velho fica logo a jusante da usina de Santo Antonio, e justamente à direita). O banzeiro do rio, pequenas ondas que lambem a margem de terra, devorou até mesmo o lugar onde estava instalado o antigo marco dos limites entre os estados do Amazonas e Mato Grosso, antes que Rondônia existisse como território. Esse marco histórico se quebrou e desapareceu. A solução encontrada pela construtora foi reforçar a margem do rio com um dique de rocha, à moda dos holandeses, ao longo de cinco quilômetros. Estão sendo usados impressionantes 85 mil metros cúbicos de rocha para conter o rio, modificando a paisagem original. A avaliação de impacto ambiental não considerou o banzeiro importante, até porque um fenômeno com esse nome não devia mesmo ter importância.”
E o professor Ott prossegue: “O teste com a primeira turbina de Santo Antônio fracassou, por razões não muito claras. Promete-se para breve novos testes. Em Jirau informações oficiosas dão conta de problemas com as ensecadeiras, que estariam sendo reforçadas em regime de urgência.(…). Com o início das obras e a chegada de milhares de trabalhadores e empresas ligadas ao empreendimento, o mercado imobiliário criou uma bolha especulativa. Os jornais locais anunciam apartamentos e casas de um milhão de reais. Um modesto apartamento de dois quartos é alugado por preços maiores daqueles de São Paulo e Rio de Janeiro. O trânsito tornou-se caótico, e Porto Velho está entre as capitais mais violentas do país”.
Recomendo a leitura da íntegra da entrevista. Antes de me despedir, dois lembretes cruéis. Um: a energia nova que se espera de Belo Monte poderia ser obtida com a troca das turbinas de usinas existentes por turbinas mais eficientes disponíveis no mercado. Dois: a necessidade de energia nova que justifica projetos como o de Belo Monte foi calculada tomando por base taxas de crescimento três vezes superiores às que se espera atualmente para o futuro próximo e pouco promissor.
Desejo boa sorte a Porto Velho, Altamira e suas respectivas vizinhanças.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro