A região de Bonito, no Mato Grosso do Sul, é um dos destinos ecoturísticos mais procurados do país. A beleza de seus rios de águas cristalinas e sua luxuriante biodiversidade é cantada em prosa e verso, e o principal atrativo para os 100 mil visitantes anuais é a flutuação.
Pequenos grupos de até dez turistas, acompanhados por um guia profissional, descem trechos dos rios locais vestindo coletes, máscara e snorkel, sem tocar o fundo nem nada, aplicando o princípio básico do ecoturismo: deixe apenas pegadas, leve apenas lembranças e fotos. Naturalmente, há cotas máximas de visitantes, por dia e por local.
No saguão do aeroporto de Campo Grande, a capital mais próxima de Bonito, a piada é recorrente: Bonito devia ser rebatizado para Lindo. Desse modo, Bonito inventou o ecoturismo de massa, mas ainda assim sustentável.
Mas no caminho de Campo Grande a Bonito, o turista de primeira viagem fica um pouco perplexo. Afinal, são três horas e meia de estrada em que a paisagem alterna entre pastagem com bois, pastagem sem bois e extensas plantações de soja. É uma paisagem verde-amarela; verde da soja e amarelo do pasto.
Se o infeliz principiante acreditar no GPS, como acreditei, tomará um atalho de estrada de terra bastante longo, em que a paisagem é um pouco mais variada. Além dos elementos citados, apresenta tímidas matas de galeria às margens de uns poucos rios e riachos bem barrentos. Mas há placas e anúncios de pesqueiros, hotéis, aluguel de barco e venda de iscas. Ah bom, se há pesca, há peixe, estamos progredindo.
Chegando em Bonito, segue a busca pelo adjetivo que batiza a cidade. Esta se resume a uma avenida, algumas parelelas e transversais e acabou. A praça principal, muito bonita, tem uma grande fonte com estátuas de duas piraputangas de uns seis metros de altura, congeladas em seu gracioso salto. À noite, com a iluminação colorida e a fonte jorrando, fica… bonito.
A visão desses belos espécimes me deu fome e fui em busca de comida – peixe, claro. Ou que tal jacaré, fartamente anunciado em vitrines e cardápios locais? Bem, o jacaré… tem, mas acabou. A única fonte de carne de jacaré era um criadouro no Pantanal, que perdeu a licença do Ibama no ano passado. Tive pena do dono do Rei do Jacaré, um dos restaurantes locais.
Ok, peixe então. Temos. Qual peixe? Pintado. Só? Só. De onde vem esse pintado? Cuiabá e Pantanal. Tão longe? Não há pesca ou produção local? Não.
Nada como conversar com garçons para começar a entender o meio ambiente e nossas sadomasoquistas relações com ele. O diálogo se repetiu em vários outros restaurantes; só achei dois com várias opções de peixe (deliciosas por sinal).
Conflito silencioso
Revigorado, parti em busca dos tais rios cristalinos. Como cheguei sem reserva de passeios, comecei visitando o Balneário Municipal, a única atração aquática com alguma infraestrutura que não está em terras particulares. A entrada custa 30 reais por pessoa. Portanto, pode ser municipal, mas não é lá muito popular. Se você, como eu, chega duas horas antes do fechamento, paga o mesmo que pagou quem chegou às 9 da manhã.
Mas tiveram o cuidado de me advertir, antes do pagamento, de que naquele dia a água não estava muito transparente. De fato, a visibilidade era de uns dois metros. Ao retornar para a cidade, entendi por quê. Quinhentos metros rio acima do balneário há uma mina de calcário. Uma densa cerca viva esconde as instalações da mina, que estão à beira do caminho de acesso ao balneário, e só percebi sua existência porque naquele instante havia movimento de caminhões no pátio, o que levantou poeira e chamou minha atenção.
Interessante, calcário… Lembrei que havia lido pouco sobre Bonito antes da viagem. A área é próxima à serra da Bodoquena, rica em rochas carbonáticas, e o subsolo da região é, portanto, um queijo suíço, já que essas rochas são relativamente solúveis. Ao longo de tempos geológicos, a água da chuva cavou rios subterrâneos, galerias e grutas, e uma delas, a Gruta Azul, é uma das principais atrações turísticas de Bonito.
A porosidade do subsolo também cria inúmeras nascentes, algumas com fluxo abundante e borbulhante, que alimentam os rios explorados ecoturisticamente.
A transparência desses rios se deve tanto à origem subterrânea da água quanto à sua composição. São ricas em carbonatos e magnésio (as pessoas não devem bebê-la, sob risco de desarranjo intestinal), cuja precipitação contribui para aprisionar as partículas em suspensão na água.
Hum, cada vez mais interessante: o mesmo calcário que torna a região um atrativo turístico é cobiçado como matéria-prima por mineradoras, cuja atividade pode comprometer o ciclo das águas subterrâneas e o próprio ecoturismo.
Mas há outras conexões relevantes. Alguns dos rios onde se pratica flutuação não são integralmente alimentados por água de nascente e, portanto, têm transparência menor, e variável. Perguntei ao guia: variável em função de quê? “Da chuva nas cabeceiras”, respondeu. Pois é, como as bacias hidrográficas desses rios são cobertas por pasto e soja, a chuva provoca forte erosão e turva os rios.
Temos aí, então, um belo cenário de conflito pelo uso de recursos ambientais; silencioso, mas conflito mesmo assim. De um lado, o time do ecoturismo, do outro, um combinado de mineração, pecuária e agricultura. Quem vai apitar a partida? Os órgãos ambientais se preocupam em manter a sustentabilidade das atividades ecoturísticas em si, mas não têm poder para arbitrar sobre o uso do solo em áreas particulares. Lembre ainda que o novo Código Florestal brasileiro legalizou a redução das matas ciliares, o que pode reduzir ainda mais a proteção dos rios contra a erosão.
Nem tudo está perdido
As áreas onde há atrações ecoturísticas em Bonito estão dentro de fazendas, a maioria delas dedicada à plantação de ‘pés de picanha’, como são ironicamente chamados os bois por algumas pessoas da região. A superfície das fazendas é ocupada por pasto e/ou soja, e apenas as manchas de vegetação ao redor dos córregos são reservadas ao ecoturismo.
Essa atividade tem sido tão rentável que muitos donos de fazenda estão deixando progressivamente de explorar a pecuária de corte para se dedicar prioritariamente ao ecoturismo. Dá para entender: até 100 turistas por dia, todo santo dia, o ano inteiro… É investimento com retorno rápido, regular, sem levar coice nem perder o sono com boi fujão, carrapaticida e febre aftosa.
Muitos donos de fazenda criaram RPPNs (Reservas Particulares do Patrimônio Natural) e estão recompondo aos poucos as matas ciliares com espécies nativas, instalando ninhos artificiais para as araras e realizando diversas outras atividades de restauração ambiental.
Essa conversão tem também impactos sociais importantes. Uma fazenda típica da região emprega em média cinco pessoas, que não se fixam em lugar nenhum, já que as fazendas geralmente não guardam os mesmos peões muito tempo (senão eles casam, têm filhos, vão precisar de casa, horta…; melhor não). A mesma fazenda, com ecoturismo, emprega 25 pessoas, que vão casar e morar onde der na telha.
Mas, mesmo assim, os guias contam que há dias em que a visitação à Gruta Azul é desconfortável para todo mundo e constrangedora para eles. A gruta fica no limite entre duas fazendas, e a plantação de soja da fazenda que não tem gruta visitável começa a uns 100 metros da área onde os turistas estacionam e aguardam a hora da visita. Quando há pulverização de herbicida sobre a soja, o cheiro é duro de aguentar e algumas pessoas passam mal, apesar de não serem plantas.
Vejam só, há conflito pelo uso do solo, da água e até do ar.
Mas é Bonito mesmo assim, e espero que dure.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro