A seção de economia dos jornais sempre traz pistas importantes sobre as grandes questões ambientais e seus futuros desdobramentos. Ali, deparei-me recentemente com uma notícia discreta, quase acanhada, mas prenhe de significados, que lamentavelmente não recortei. Era algo como “estão em andamento no Brasil novos projetos de parques eólicos com produção elétrica total equivalente a uma Belo Monte”.
Assim como os parques eólicos já implantados e em operação, esses projetos têm financiamento privado, nacional e estrangeiro, e licenciamento rápido, instalação idem. Sem polêmica, sem estupro das regras de licenciamento, sem malabarismos arriscados com o meu, o seu, o nosso dinheiro. E com baixa emissão de carbono, metano e outros gases de efeito estufa. Parece interessante, não? Curioso isso ser tão pouco comentado.
Procurando só um pouquinho, achei uma estimativa do potencial eólico brasileiro de cerca de 140 gigawatts, segundo o Atlas Eólico Brasileiro, publicado pelo Centro de Pesquisas de Energia Elétrica da Eletrobrás.
Embora esse colosso de potencial esteja concentrado na região Nordeste do país, o maior parque eólico da América Latina hoje fica a 100 km de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul. O Parque Eólico de Osório, no município de mesmo nome, tem 75 aerogeradores que somam uma potência instalada capaz de gerar 150 megawatts (MW), o que abasteceria meia Porto Alegre por um ano.
Mas ele não ficará no topo do pódio muito tempo, pois um complexo de 14 parques eólicos na Bahia está previsto para entrar em operação em julho de 2012. Será o maior do país, com cerca de 300 MW. E já existem vários outros com capacidade menor, como o Parque Eólico Praias de Parajurú, no Ceará, com cerca de 30 MW instalados – e o triplo disso em breve.
São boas notícias, que sugerem que a passagem para uma economia de baixo carbono pode não ser tão traumática assim. Geração mais sustentável na fonte, redução do consumo na ponta, e está tudo resolvido.
Mas o devaneio não resiste a uma olhada pela janela, vendo ao longe o engarrafamento de sempre, mas com a novidade da forte presença dos possantes utilitários de boutique que o crescimento econômico recente nos trouxe. Assim vai ser difícil…
Ameaça à produção agrícola
Mas convém que o bom senso seja mais ‘flex’ que esses reluzentes jipões, pois há sinais preocupantes de que o aquecimento global já estaria ameaçando a produção agrícola, pressionada também pelo duplo aumento da demanda: a população humana continua crescendo, assim como sua demanda por uma dieta mais proteica.
Catástrofes climáticas recentes, como as ondas de calor que assolaram a Europa, a seca na Austrália ou as inundações nos Estados Unidos, provocaram perdas de colheitas e os cientistas creem que esses eventos foram causados ou agravados pelo aquecimento global. Alguns cientistas que participaram da elaboração dos relatórios sobre clima do IPCC se perguntam hoje se não deveriam ter sido mais alarmistas sobre a relação entre aquecimento e agricultura.
De fato, o acúmulo de dados vai indicando que aparentes sutilezas, como a maior temperatura na época do plantio e a maior duração das secas, podem reduzir perigosamente a produção agrícola. Trabalhos e relatórios sobre o tema têm aparecido com mais frequência, e passei a ficar mais atento à questão quando soube que Brasília é muito mais seca que a Amazônia não porque chove menos, e sim porque seu período de seca é mais longo.
Tudo bem, calor e seca podem reduzir a produção agrícola. Mas o vilão CO2 não pode aumentá-la? De fato, durante muito tempo se pensou que a queima de combustíveis fosseis poderia estimular o crescimento das plantas e, portanto, a agricultura. Parecia lógico, afinal as plantas precisam de CO2 para crescer. E quando as plantas eram colocadas em câmaras com teores aumentados de CO2 no ar, elas de fato cresciam mais.
O próprio IPCC, em seu relatório de 2007, reconhecia que o aquecimento global seria um desafio para a agricultura nos trópicos, mas ponderava que o mesmo poderia ser benéfico para as áreas agrícolas temperadas e frias do hemisfério Norte, e ainda sugeria que o efeito estimulante do CO2 compensaria algumas das perdas.
Tecnologia não é tudo
Mas testes recentes feitos por cientistas da Universidade de Illinois (Estados Unidos) mostraram que cultivos de soja, mesmo bombados em CO2, perdem produtividade quando expostos a temperaturas mais elevadas e umidade mais baixa, características compatíveis com os cenários climáticos previstos para o futuro próximo.
E economistas como Wolfram Schram, da Universidade de Columbia (Estados Unidos), e David Lobell, da Universidade de Stanford (Estados Unidos), estudiosos da relação entre variações naturais de temperatura e rendimento agrícola, sugerem que o aumento da temperatura nos principais países agrícolas está reduzindo o rendimento. Consideram que subestimamos tanto a vulnerabilidade das culturas ao calor quanto a velocidade com que este aumentaria.
Os agrônomos são mais otimistas e têm desenvolvido com sucesso variedades mais resistentes à seca e ao calor. Vislumbram-se soluções via engenharia genética. Mas as estimativas correntes preveem que seremos 10 bilhões no planeta até o fim do século, o que poderá exigir dobrar a produção de alimentos até lá.
A humanidade já realizou essa façanha algumas vezes no passado.
O problema é que isso foi em outro planeta, mais fresco, mais verde, mais farto. Com o planeta de segunda mão de hoje, tudo fica mais incerto. Vamos mesmo precisar de muita tecnologia. Mas os cientistas que assessoram o senhor Mercado inventaram de inventar estimuladores de ereção antes de inventar métodos contraceptivos seguros, baratos e que não cortem o clima.
Tudo ao contrário. Assim não pode, assim não dá.
Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro