No filme Brilho eterno de uma mente sem lembranças, Clementine Kruczynski, personagem interpretada pela atriz Kate Winslet, contrata os serviços da empresa Lacuna Inc., capaz de apagar seletivamente as memórias de um relacionamento amoroso fracassado.
Ao descobrir o que sua ex-companheira fez, Joel Barish (Jim Carrey) busca o mesmo serviço, mas se arrepende durante a realização do procedimento e faz de tudo para manter viva em sua mente a lembrança de Clementine.
Um estudo publicado este mês na revista científica Journal of Neuroscience descreve uma técnica capaz de eliminar neurônios maduros do hipocampo, nascidos numa determinada janela de tempo, e cuja consequência, em camundongos, foi apagar suas memórias recentes.
As primeiras evidências de que memórias são formadas em regiões específicas do cérebro, batizadas de hipocampo, surgiram em 1957.
O nome vem do latim e foi cunhado em 1587 por Julius Caesar Aranzi. Esse anatomista italiano encontrou semelhanças entre tais estruturas cerebrais e um cavalo marinho.
Mais recentemente, descobriu-se que justamente no hipocampo, inclusive de pessoas adultas, ocorre a geração de novos neurônios, fenômeno conhecido como neurogênese.
É consenso que esses neurônios recém-nascidos desempenham algum tipo de papel na memória, mas o que exatamente, é um mistério. Alguns estudos sugerem que sejam importantes para a memória espacial ou responsáveis pela aposição entre datas e lembranças.
Tais conclusões surgiram a partir de experimentos em que cientistas bloqueavam a neurogênese antes de novas memórias serem formadas em camundongos e observavam o que acontecia com os animais algumas semanas depois.
Eliminando neurônios
No estudo publicado este mês, pesquisadores de um hospital canadense resolveram investigar o papel de neurônios já maduros do hipocampo para a formação da memória.
Em vez de interferirem diretamente na neurogênese, ou seja, na proliferação das células do hipocampo, eles desenvolveram uma estratégia baseada na eliminação seletiva de neurônios já nascidos, antes ou após o aprendizado de uma determinada tarefa.
Cabe aqui mencionar, com orgulho, que a primeira autora desse trabalho, Maithe Arruda-Carvalho, é brasileira. Mestre em ciências biológicas, foi orientada pelos professores Luciana Chiarini e Rafael Linden, no Instituto de Biofísica da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Atualmente, faz doutorado no Canadá.
Para alcançar esses resultados, Maithe e seus colegas do Hospital para Crianças Doentes de Toronto criaram camundongos capazes de expressar o gene para o receptor da toxina da difteria, normalmente inofensiva para esses roedores.
Quando esses animais transgênicos recebiam tamoxifeno, neurônios gerados em seus hipocampos passavam a expressar o receptor para a toxina diftérica.
Sete semanas mais tarde, os camundongos eram treinados em tarefas distintas, relacionadas à navegação espacial e medo.
Um dia após o treino, a equipe administrava a própria toxina da difteria, o que induzia a morte seletiva dos neurônios que expressavam seus receptores, aqueles nascidos quando os animais foram expostos ao tamoxifeno.
Um outro grupo de camundongos recebeu a toxina diftérica na semana anterior ao treinamento. Nesse caso, os novos neurônios já tinham sido eliminados antes do início dos treinos.
Esses animais, que receberam a toxina diftérica antes do treinamento, se lembravam das tarefas, mas aqueles que a receberam após o treinamento, tiveram amnésia.
Um terceiro grupo de camundongos recebeu a toxina diftérica um mês após o treinamento e também apresentou deficit de memória. Ou seja, a eliminação de neurônios nascidos mesmo um mês após uma determinada tarefa ter sido aprendida, comprometia a memória desses animais.
Lembrando e aprendendo
A descoberta de que a perda de neurônios maduros atrapalha uma memória anteriormente adquirida fornece evidência experimental direta de que essas células, se disponíveis no momento do aprendizado, tornam-se componentes essenciais e permanentes de traços de memória do hipocampo.
Em outras palavras, o que a brasileira Maithe e seus colegas do Canadá demonstraram é que a perda de neurônios integrados à circuitaria do hipocampo influenciam o ato de lembrar e esquecer acontecimentos anteriores ao próprio nascimento dessas células.
Os avanços na compreensão das bases biológicas da formação de nossas memórias poderão fazer aparecer, no futuro, empresas nos moldes da Lacuna Inc.
Não dá para prever se um dia uma empresa desse tipo irá surgir na vida real. Mas se assim o for, teremos de refletir se estaremos dispostos a nos livrar de memórias doloridas de um relacionamento malsucedido sabendo que nosso amadurecimento como seres humanos depende fundamentalmente da lembrança dos momentos marcantes de nossas vidas, sejam eles bons ou ruins.
É justamente isso que o melancólico Joel Barish tenta evitar ao longo de toda a trama cinematográfica, a perda de sua identidade, forjada com lágrimas e dor nos neurônios de seu cérebro.
Stevens Rehen
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro