Censurar dicionários?

Discutiu-se um pouco, nas últimas semanas, sobre dicionários. Mais exatamente, foram tornadas claras algumas características e funções dessas obras. Todos os que se pronunciaram reafirmaram verdades óbvias. É de esperar que a maioria das pessoas tenha uma ideia clara sobre o que seja um dicionário.

O que levou às recentes manifestações foi uma inusitada ação do Ministério Público, acionado por um cidadão que considerou que dicionários ofendem grupos (etnias etc.) ao registrarem acepções negativas de certas palavras. Concretamente, houve uma ação do MP contra o Dicionário Houaiss, por registrar acepções de “cigano” consideradas ofensivas (“aquele que trapaceia, velhaco, burlador”).

Pode-se ver melhor o caso na versão on-line do referido dicionário, até porque as acepções consideradas ofensivas tinham sido retiradas do ar, em decorrência da ação ou de sua divulgação. Mas, pouco tempo depois, foram repostas, com uma explicação sobre a origem daquelas acepções (talvez em decorrência das manifestações contra a ação): “Uso: as acepções 5 e 6 resultam de antiga tradição europeia, pejorativa e xenófoba por basear-se em ideias errôneas e preconcebidas sobre as características deste povo que no passado levava uma existência nômade”.

Verbete 'cigano'
Após ação do Ministério Público, o verbete ‘cigano’ ganhou no ‘Dicionário Houaiss’ uma explicação sobre a origem de acepções da palavra consideradas negativas. (imagem: reprodução)

Algumas coisas já poderiam estar claras nesta altura da história. Uma delas é que cada obra tem uma função diferente nas sociedades. Jornais informam e opinam, romances e filmes contam histórias seguindo determinadas técnicas, catálogos registram objetos (os de pássaros registram pássaros, os de flores, flores). Mapas registram dados geográficos, coletâneas de piadas registram piadas, e as de provérbios, provérbios. Algumas não deveriam existir? Pode ser. Mas não faz sentido deixar de registrar ‘fatos’ em decorrência de uma avaliação negativa deles (como deixar de registrar o impeachment de Collor em uma exposição das atividades no Senado?!).

Dicionários são catálogos de palavras. Registram sua grafia ou grafias, sua história e seus sentidos. Quase todas as palavras têm diversos sentidos ou usos (o Houaiss registra 57 acepções de “ponto” e 15 de “doce”, por exemplo). Se o dicionário é bem feito, se resulta de boa pesquisa, incluirá as acepções das palavras e assinalará também o efeito ou a origem de certos usos: se as palavras ou os sentidos e usos são populares ou eruditos, se são técnicos, se conotam preconceitos etc.

Existem dicionários de gíria, de palavrões, de regionalismos, de economia, de psicanálise, de arte, de sociologia, de sonhos… O que se espera de um bom dicionário de cada uma dessas especialidades é que registre o máximo de palavras e de seus usos e sentidos em cada campo, exatamente como de um catálogo de animais ou de plantas se espera o melhor e mais minucioso registro da fauna e da flora.

Ato ou efeito de registrar

Diversas manifestações bastante óbvias na mídia tentaram fazer com que o representante do MP entendesse que o dicionário é apenas um registro mais ou menos completo. Dicionário não inventa palavras, não inventa os sentidos das palavras, não incentiva uso de palavras em sentidos desabonadores. Mas também não condena palavras nem sentidos.

Dicionário não inventa palavras, não inventa os sentidos das palavras, não incentiva uso de palavras em sentidos desabonadores

Dicionário não ensina. Não manda falar. Não sugere que se ofenda algum grupo. O que não quer dizer que seja ‘neutro’, elaborado por marcianos ou anjos sem interesse ideológico. Tomará decisões, como outras publicações nas áreas da economia, da política, da história, da ecologia, da religião. O melhor combate a um dicionário que tenha problemas é outro dicionário que não os tenha, assim como o remédio para um livro ‘inclinado’ de história é outro livro de história que não seja inclinado ou que seja inclinado para outro lado.

Para ficar num exemplo mais neutro: bons dicionários registram diversas acepções de “namorar” e fornecem também uma informação gramatical, baseada no uso: que sua regência é direta e indireta (namorar o filho do vizinho, namorar com a filha do prefeito). Os exemplos aduzidos mostram também que a regência é sempre direta quando “namorar” tem o sentido de ‘demonstrar interesse episódico’ (namorar a bolsa, o carro, nunca com um carro ou com uma bolsa).

Há dicionários de ‘ajuda’, como os analógicos (bons para quem quer incrementar o léxico em seus textos), assim como há catálogos de plantas medicinais (espera-se que saibam o que dizem!).

Liberdade de expressão? Ah?

A ação do MP baseou-se em decisão judicial segundo a qual “o direito à liberdade de expressão não pode albergar posturas preconceituosas e discriminatórias, sobretudo quando caracterizadas como infração penal” (fui ao dicionário para ver os sentidos registrados de “albergar”…).

Mas não ocorre a nenhum dicionarista imaginar que o registro de palavras ou sentidos seja uma atividade relacionada à questão da liberdade de expressão ou com “albergar” posições preconceituosas. Recorro de novo às comparações: registrar um animal nocivo não implica apoiar que ele mate; registrar uma planta carnívora não implica combatê-la em tempos de defesa da alimentação vegetariana; estudar cânceres não implica ser favorável ao aumento do número de casos dessas doenças.

Assim, a censura a um dicionário não é medida adequada para combater preconceitos. Dicionaristas não enunciam, não proferem, não assumem, não se comprometem com o que registram. Registram que determinado objeto existe e que tem certas origens e conotações. Foi a sociedade, durante sua história, que produziu e manteve vivas as palavras e seus sentidos.

Foi a sociedade, durante sua história, que produziu e manteve vivas as palavras e seus sentidos

Eventualmente, o combate ao uso de certas palavras, especialmente em contextos que implicam agressão, injúria, preconceito etc. é defensável e até elogiável. Mas combater empregos efetivos em contextos específicos é completamente diferente de combater o registro desses comportamentos.

Pedir que a edição seja recolhida ou modificada é equivalente a pedir a retirada de animais de catálogos da fauna, ou que livros de anatomia suprimam órgãos ou partes do corpo que pareçam ofensivos (intestino grosso, pênis, cordas vocais etc., conforme o gosto do leitor). A atitude lembra estranhas regras: denunciado um crime, pune-se o repórter ou o jornal. É tirar o sofá da sala… 

Se o MP acha que deve agir em questões de ofensa à honra e em casos semelhantes, que processe, por exemplo, quem chama de cigano aos velhacos. Aliás, para fundamentar sua ação, o MP vai precisar de um dicionário em que a acepção injuriosa esteja registrada e avaliada como negativa. Sem ela, vai se basear em quê?

Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas