Cientistas no front

Lembro-me vividamente do dia em que recebi pela primeira vez em meu laboratório uma pessoa em busca de tratamento com células-tronco.

Cinco de dezembro de 2008 foi quando Edson (nome fictício) chegou de Fortaleza, sem avisar. Buscava desesperadamente uma cura para seu irmão com esclerose lateral amiotrófica, doença fatal caracterizada pela degeneração de neurônios motores e perda progressiva dos movimentos voluntários.

Conversamos longamente, expliquei que em todo o mundo as pesquisas estavam no início, que seria um enorme risco aceitar procedimentos que não passaram pelo crivo da comunidade científica, no mínimo um desperdício de recursos.

Durante a última década, milhares de pacientes com doenças graves, que não respondem aos tratamentos convencionais, saíram de seus países de origem atraídos pela promessa de cura a partir de células-tronco. Esse fenômeno, conhecido como “turismo de células-tronco”, expõe pacientes a procedimentos não regulamentados, perigosos e muitas vezes fraudulentos.

Testes clínicos são sempre custeados com dinheiro público ou pelas empresas envolvidas. Pacientes nunca devem pagar nada pelo procedimento

Clínicas surgiram na China, Rússia, Índia, Turquia, México e Alemanha para tirar proveito de pacientes desenganados. Anunciam na internet seus serviços diretamente aos consumidores, fazem afirmações exageradas sobre os benefícios, minimizam os riscos e cobram R$ 30 mil ou mais por cada “tratamento”. 

Aqui uma informação extremamente relevante: testes clínicos são sempre custeados com dinheiro público ou pelas empresas envolvidas. Pacientes nunca devem pagar nada pelo procedimento.

Em 2009, a polícia húngara prendeu quatro pessoas que vendiam por 25 mil dólares “tratamento” com células-tronco. No Brasil, um caso marcante aconteceu há cinco anos, quando “células-tronco em pó” (na verdade, cartilagem de peixe) foram oferecidas a pacientes por médicos inescrupulosos. Os envolvidos foram denunciados, mas não sei se suas licenças foram realmente cassadas.

Nunca é demais lembrar que, salvo raras exceções – tais como a utilização de células-tronco da medula óssea no tratamento de leucemia –, a maior parte dos procedimentos ainda é experimental e seus riscos desconhecidos.

Coleta de medula óssea
Coleta de medula óssea. A utilização de células-tronco da medula no tratamento de leucemia é um dos poucos procedimentos com esse tipo de célula aprovados em pacientes. (foto: Chad McNeeley/ US Navy)

Posição privilegiada

Revistas científicas como Science e Lancet já denunciaram o turismo de células-tronco, enfatizando a necessidade de mais regulamentação e supervisão.

De fato, regras adicionais são necessárias, mas haverá limitações seja qual for o regulamento. Basicamente porque as regulamentações não têm abrangência internacional. Aqueles que não querem aderir a determinadas regras podem simplesmente se mudar para um país com ambiente mais permissivo. Nesse sentido, acordos internacionais podem ajudar a preencher essa lacuna regulamentar.

O alerta de médicos aos pacientes sobre os perigos de terapias não comprovadas também é essencial. Entretanto, não é trivial convencer alguém a não receber uma terapia “alternativa”, especialmente quando as chances de melhoras com os tratamentos convencionais se esgotam.

Vale a pena, então, considerar outras estratégias para lidar com o problema do turismo de células-tronco. Artigo publicado na edição de hoje (29/7) da Embo, revista da Associação Europeia de Biologia Molecular, aponta a responsabilidade para o lado dos cientistas. Os autores sustentam que os pesquisadores têm um papel fundamental a desempenhar na redução dos danos causados pelo fenômeno.

Cientistas compreendem a ciência por trás da pesquisa, podem discriminar procedimentos com potencial terapêutico daqueles de maior risco

Em primeiro lugar, cientistas devem prestar contas publicamente sobre o progresso das pesquisas. Nada mais natural, visto que é a sociedade quem majoritariamente financia o desenvolvimento da ciência.

Depois, os cientistas estão em posição privilegiada: compreendem a ciência por trás da pesquisa, podem discriminar procedimentos com potencial terapêutico daqueles de maior risco.

Além disso, os cientistas têm controle sobre a distribuição das células-tronco e devem ter muita atenção ao compartilhar seus insumos. Garantias de que células-tronco serão usadas na investigação biomédica ou em testes clínicos autorizados por comitês de ética devem ser exigidas.

É óbvio que todo cientista foge da burocracia que desacelera suas pesquisas, porém, nesse caso, longe de ser um desperdício de tempo e esforço, trata-se de parte da resposta da comunidade científica ao turismo de células-tronco.

Proatividade

A Sociedade Internacional para a Pesquisa com Células-tronco, formada por pesquisadores que atuam no campo, desempenha papel importante ao divulgar informações relacionadas aos estudos e aplicações dessas células. No site da entidade, há uma lista das dez coisas que se deve saber sobre tratamentos com células-tronco. Ela pode ajudar a eliminar os ruídos e mal-entendidos que circulam a respeito.

No Brasil, a Rede Nacional de Terapia Celular também disponibiliza em seu site manual com informações necessárias sobre terapias com células-tronco.

No ano passado, o Laboratório Nacional de Células-Tronco Embrionárias da UFRJ (LaNCE) criou um canal de comunicação direto com a população. Pesquisadores do LaNCE já responderam a perguntas específicas de mais de 500 pacientes que buscam esclarecimentos sobre tratamentos com células-tronco.

Pessoalmente, já me envolvi em uma situação curiosa tentando desfazer mal-entendidos sobre terapias com células-tronco. O neurocientista Roberto Lent e eu ajudamos a elaborar um diálogo sobre o assunto que foi ao ar na novela Viver a Vida. A repercussão foi ótima e esclareceu muitas dúvidas da população.

Confira o diálogo da novela Viver a Vida elaborado por Stevens Rehen e Roberto Lent

Entre 2008 e 2010, Edson e eu trocamos diversos e-mails. Em um de nossos últimos contatos, independentemente de minhas ressalvas, estava às vésperas de embarcar com o irmão para a Alemanha. Com o apoio de uma emissora de TV de Fortaleza, angariou os milhares de euros cobrados pela clínica para o “tratamento”.

Depois eu soube que seu irmão não apresentou qualquer melhora após receber as células. Muito pelo contrário, a viagem foi extremamente cansativa, e o paciente ficou ainda mais debilitado. Recentemente, os serviços oferecidos pela tal clínica foram suspensos pelo governo alemão, como pode ser comprovado pelo anúncio em sua página na internet.

Nesta sexta-feira, no momento em que finalizava esta coluna, tive a notícia, pelo Edson, de que seu irmão morreu ainda no ano passado.

Seja no Brasil ou no exterior, a fiscalização sobre clínicas e médicos de ética questionável deve ser constante. Da mesma forma, a participação e engajamento de cientistas em questões sociais, políticas e educacionais relacionadas à aplicação dos conhecimentos que ajudam a produzir devem ser incentivados. É a responsabilidade que nenhum cientista pode deixar de exercer.

Stevens Rehen
Instituto de Ciências Biomédicas
Universidade Federal do Rio de Janeiro