O último carnaval carioca viu transformados em problema social a proliferação e o agigantamento dos blocos de foliões. Eles pulularam por toda parte, mas particularmente na zona sul da cidade. Ou foi aí, pelo menos, que sua passagem mais suscitou celeuma por parte dos moradores, ameaçados – alegam – em sua ordeira tranquilidade.
Para quem acabara de ler a tese de doutorado de Julia Galli O’Donnell, do Museu Nacional, sobre “culturas urbanas e estilos de vida na invenção de Copacabana”, o problema ganhava maior inteligibilidade, à luz de um longo processo de transformação das sensibilidades e valores das elites ocidentais no tocante à natureza, à corporalidade e aos regimes de prazer.
Às muitas análises que têm se debruçado sobre o tema no exterior, a autora acrescentou um fascinante estudo de caso, que acompanha as transformações nas sensibilidades pelo fio dos deslocamentos muito concretos da cidade do Rio de Janeiro em direção à sua orla marítima meridional.
No Rio de Janeiro, essas transformações foram dramatizadas de maneira exemplar, em função da peculiar geografia da cidade e da disponibilidade de praias em certa área de sua extensão. Elas se tornaram o gancho da constituição do valor social da zona sul, traduzido certamente no alto valor econômico de sua estrutura imobiliária.
Análise histórica
O antropólogo brasileiro Gilberto Velho (1945-) já tinha analisado, em 1977, o processo de ocupação acelerada do bairro de Copacabana a partir dos anos 1950, com a construção de prédios de apartamentos para moradores de baixa renda, que serviram como autêntica “utopia urbana” para os segmentos ascendentes, sobretudo da zona norte, mas também do subúrbio e da baixada fluminense.
A tese de Julia O’Donnell, orientada por Velho, estende a análise para muito mais longe, desde o projeto de implantação de um serviço balneário naquela praia distante e selvagem, em 1872! Seu trabalho desfia a série de articulações simbólicas, de iniciativas econômicas privadas, de incentivos governamentais e de manobras administrativas que foram viabilizando a crescente ocupação das praias oceânicas cariocas até hoje.
É claro que a abertura dos dois túneis (o Velho, em 1892, e o Novo, em 1904) que ligam os bairros de Botafogo e Copacabana, na zona sul carioca, e a construção do hotel Copacabana Palace, em 1923, são os marcos mais óbvios desse processo, articulados com a extensão das linhas de transporte coletivo, a consolidação da malha urbana e a crescente especulação imobiliária.
Ao lado desses marcos, desenha-se um processo de mudança ideológica sem o qual nada disso poderia ter se desenrolado: o sentido e o valor de morar junto ao mar foram construídos paulatinamente, formando uma concepção da relação entre ser humano, cidade e natureza que sobrepujou antigas resistências culturais.
Uma fonte importante de informação usada no estudo foi a imprensa das primeiras décadas do século 20, sobretudo o jornal Beira-Mar, que começou a circular em 1922 e alardeou as qualidades dos bairros marítimos e das elites que os começavam a povoar.
Um “projeto praiano-civilizatório” se desenhava, com o elogio às qualidades dos segmentos sociais que se dispunham a uma vida “moderna”: uma maior exposição dos corpos à experiência da praia e aos olhares públicos; uma maior disposição ao cultivo de esportes e da vida ao ar livre; uma adaptação às residências no estilo dos bangalôs (e sucessivamente no dos apartamentos). Falava-se em uma “aristocracia moderna”, característica dos “cilenses”, ou seja, os habitantes do circuito CIL: Copacabana, Ipanema, Leme.
Disciplina e autocontrole
O conceito de “processo civilizatório”, elaborado pelo sociólogo alemão Norbert Elias (1897-1990), baseia-se num diagnóstico de longa duração sobre a constituição do monopólio da força física pelo Estado e o desenvolvimento de um autocontrole pessoal capaz de permitir uma intensa observação de si e um severo adestramento das habilidades corporais.
O filósofo francês Michel Foucault (1926-1984) iluminou esse processo com sua análise da disciplinarização dos sujeitos modernos e da individualização e interiorização dos controles antes exercidos pelo poder soberano. O senso comum sobre a noção de “civilização” efetivamente implicou, desde o século 18, algo de constrição e canalização da expressividade corporal, como na contenção das maneiras de se portar à mesa.
É verdade, porém, que, ao mesmo tempo em que essa disciplina íntima e corpórea se instalava, também se desencadeava, contrastiva e contraditoriamente, uma incitação aos sentidos – o que se pode associar à dinâmica do romantismo, em suas múltiplas facetas.
A tensão encontrou desaguadouros peculiares no século 20, com a expansão desenfreada dos mercados consumidores, a densificação urbana e a ampliação do acesso a uma educação letrada. O gosto pela exposição à água do mar e ao sol foi solidário de uma exacerbação da sensibilidade periférica. Essa intensificação de sentidos foi inicialmente associada a uma busca por saúde e higiene e, logo depois, tornou-se independente, em um franco processo de procura pelo prazer como bem supremo.
Esse movimento iniciou-se na cultura europeia e nutriu-se de suas próprias representações sobre os climas cálidos, tropicais: ameaçadores, por um lado, sedutores, por outro. No Brasil, um penoso processo de valorização da própria natureza transcorreu ao longo do século 19, culminando, no século 20, com uma afirmação generalizada das vantagens de uma cultura tropical, à beira-mar, liberada dos constrangimentos da vida hiper-racionalizada e hiper-ritualizada dos centros metropolitanos.
Elites praianas
Foi só na contracultura dos anos 1960 (ela própria herdeira direta do romantismo) que essa linha de força atingiu a juventude dos países centrais, vindo reverberar posteriormente em países como o Brasil. Aqui, porém, o valor de uma vida praiana já se vinha estabelecendo desde os anos 1920, como demonstra a tese de O’Donnell, com o deslocamento de uma parte das elites para a incipiente zona sul.
Embora esse deslocamento se apresentasse em oposição às elites tradicionais, era ele próprio fortemente elitista, cioso das prerrogativas dos arautos do futuro, portadores da modernização. A realidade posterior da ocupação de Copacabana arruinou esses sonhos originários, mas não chegou a afetar os bairros seguintes, que só se veem ameaçados nos fins de semana ensolarados do verão ou no prodigioso engrossamento dos blocos de carnaval.
O aspecto mais intrigante do cenário atual, melhor focado à luz dessa recuperação da história social da praia carioca, é a confluência complexa, enormemente tensa, entre as disposições burguesas de uma civilização praiana (que teve uma expressão exemplar no imaginário da bossa nova) e as disposições da corporalidade popular, fracamente afetada pelo autocontrole civilizatório.
Para todos esses atores, a praia é um palco privilegiado do sentido de uma vida prazerosa. Mas os papéis que aí desempenham são muito diferentes, acrescentando uma nota dramática e amarga à aparente comunhão de um idílico lazer à beira-mar.
Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Campbell, Coli . A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de Janeiro: Rocco, 2001.
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