Papel, para que te quero?

Misture carvão com ácido sulfônico e água. Submeta a mistura a uma boa chacoalhada em ultrassom para obter uma tinta preta. Pincele um pedaço de papel com a tinta para obter uma superfície condutora. Coloque uma camada do óxido conhecido como espinélio de lítio e manganês – LiMn2O4 – sobre um pedaço da superfície pintada e uma camada do espinélio de lítio e titânio – Li4Ti5O12 – sobre outro pedaço. Superponha um sobre o outro, como um sanduíche, com as faces pintadas na parte interna.

Pronto: eis a receita para a criação de uma bateria de papel!

Em grandes linhas, essa é a essência do método proposto pela equipe de pesquisadores liderada por Yi Cui, da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. O procedimento, descrito no início deste mês  nos Anais da Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos da América (PNAS, na sigla em inglês), permite a criação de dispositivos de armazenamento de energia extremamente flexíveis.

A receita permite a criação de dispositivos de armazenamento de energia extremamente flexíveis.

Mas será mesmo tão simples? Não, não é bem assim… A descrição acima é um primor de exagero. Em primeiro lugar, esse carvão não é aquele usado para fazer churrasco – é uma forma especial de carbono, denominada grafite. E não é qualquer pedaço de grafite que pode ser usado. Tem que ser grafite na forma de um nanotubo. Ou seja, um cilindro com aproximadamente um nanômetro (a bilionésima parte do metro) de diâmetro e comprimento mais de um milhão de vezes maior.

Não é possível produzir esses nanotubos simplesmente queimando um pedaço de madeira – são necessários equipamentos razoavelmente sofisticados, além de alguns truques. Por exemplo, os nanotubos têm que ser cobertos com uma substância química denominada surfactante, de modo que eles sejam dispersos como partículas isoladas para formar a tinta. Depois, o surfactante deve ser removido. Também não é qualquer forma de espinélio de lítio e manganês que pode ser usado. Tem que ser usado espinélio na forma de nanobastão, o que exige um bom domínio de determinados procedimentos químicos. 

Com todos os requisitos necessários, esse procedimento foi realizado pela equipe de Yi Cui, da Universidade de Stanford, nos Estados Unidos. Agora, excetuando-se a preparação da tinta, que exige a tecnologia mencionada acima, o procedimento é realmente simples. Basta pincelar a tinta sobre uma folha de papel para torná-lo altamente condutor. Com o papel condutor na mão, o resto é quase um trabalho de bricolagem.

Eletrônica flexível

Na verdade, esses processos tipo serigrafia voltaram ao mundo eletrônico com as aplicações dos nanomateriais. Podemos dizer que tudo isso deu origem a uma verdadeira comunidade da eletrônica flexível, uma novidade do século 21 que reúne aqueles que projetam e fabricam circuitos eletrônicos em substratos flexíveis, como os polímeros. A literatura está cheia de trabalhos nessa área, e inúmeras patentes já foram registradas.

Para ficar restrito ao tema de hoje, convém lembrar que em 2007 uma equipe do Instituto Politécnico Rensselaer (Nova York) já havia produzido algo similar ao do grupo de Stanford. Em vez de usar papel comum, no entanto, o grupo de Nova York preparou um filme à base de celulose e o depositou sobre silício. Eles também usaram os nanotubos como elementos ativos nos terminais da bateria. Com essa funcionalidade, porém, os nanotubos haviam apresentado problemas.

Uma boa ideia foi usar papel comum, sobre o qual todos os tipos de tinta aderem fortemente

Para contornar esses obstáculos, o pessoal de Stanford teve duas ideias interessantes. A primeira foi usar os espinélios como elementos ativos nos terminais da bateria. A outra foi usar papel comum, sobre o qual todos os tipos de tinta aderem fortemente. No primeiro teste eles fizeram funcionar um led com uma pequena bateria.

Confira como foi o procedimento no vídeo abaixo, produzido pela Universidade de Stanford (em inglês): 

Supercapacitores

É provável que a invenção tenha muitas aplicações no futuro, embora haja algum ceticismo em determinados segmentos da comunidade científica. De qualquer modo, além da bateria, outra aplicação já vislumbrada é na área de armazenamento de energia – especificamente, na fabricação de supercapacitores, ultracapacitores, pseudocapacitores ou capacitores eletroquímicos de dupla camada (EDLC, na sigla em inglês). Seja qual for a denominação preferida, o mecanismo de funcionamento é o mesmo. Quem já teve a oportunidade de estudar noções básicas de eletricidade talvez estranhe a denominação supercapacitor. Vejamos o surgimento desse conceito.

O modelo mais simples de um capacitor, inventado no século 18, é constituído de duas placas metálicas, paralelas, separadas por um dielétrico (um material isolante) –o ar, por exemplo. Esse dispositivo tem muitas utilidades nos circuitos eletroeletrônicos, sendo uma delas a de acumular energia produzida pelo campo elétrico.

A energia é acumulada sob a forma de separação de cargas elétricas. Enquanto cargas positivas são mantidas em uma das placas e as negativas na outra, o dispositivo acumula energia elétrica cuja quantidade depende da  quantidade de carga, do tipo de dielétrico e de outros parâmetros geométricos, tais como área das placas e separação entre elas. No momento que as cargas se anulam, a energia é liberada.

Ao longo desses mais de duzentos anos, o dispositivo passou por vários avanços tecnológicos, sobretudo em relação ao tipo de dielétrico, com o objetivo de aumentar a densidade de energia acumulada. A primeira inovação, no final do século 19, consistiu em acrescentar uma substância eletrolítica (capaz de liberar íons) no espaço entre os terminais. Nascia o capacitor eletrolítico.

Nos anos 1950 surgiu o conceito de capacitor de dupla camada, no qual o espaço entre as placas é dividido em dois, por meio de um separador eletrolítico. O dispositivo apresentava grande capacidade de armazenamento, mas com baixa densidade de energia. O rendimento foi consideravelmente melhorado quando os terminais metálicos foram substituídos por óxidos metálicos. Nessa configuração, os capacitores passaram a ser denominados supercapacitores. A partir de 1978 eles passaram a ser usados em inúmeros produtos eletrônicos.

Supercapacitores
Os supercapacitores se caracterizam pela grande capacidade de armazenamento, com baixa densidade de energia (foto: Maxwell Technologies).

O desafio atual – produzir tais dispositivos em escala nanométrica – tem povoado a imaginação dos pesquisadores da área. Tanto a equipe do Rensselaer quanto a de Stanford acreditam que seus inventos podem ser usados na fabricação de supercapacitores minúsculos, mas ainda não na escala nanométrica, com vantagens sobre os dispositivos atuais. De fato, a geometria de seus dispositivos é favorável. A diferença entre um capacitor e uma bateria é simplesmente o terminal metálico, à base de lítio.

Os resultados obtidos sugerem que eles ainda estão longe de uma realização industrial. Quando forem comercialmente viáveis, no entanto, poderão ser usados em outras aplicações, como carros elétricos ou híbridos, cartões inteligentes, monitores, dispositivos para diagnósticos biomédicos, celulares e computadores portáteis. Enfim, virtualmente qualquer equipamento que necessite de bateria e capacitor se beneficiará dessa tecnologia.

Ceticismo e realidade brasileira

A utilização industrial de supercapacitores convencionais ainda não é plena, mas se espera um grande incremento durante a próxima década. Já sobre o uso dos supercapacitores de papel, há controvérsia. Peidong Yang, professor de química na Universidade da Califórnia em Berkeley, acredita que sua comercialização se dará em pouco tempo. Por outro lado, Daniel Sperling, perito em fontes alternativas de energia da Universidade da Califórnia em Davis, é francamente cético quanto a isso.

A pesquisa sobre supercapacitores ainda não motivou muitos grupos brasileiros

Seja qual for a expectativa dos especialistas, essa tecnologia não pode ser desconsiderada pelos pesquisadores da área. No entanto, tudo indica que ela ainda não motivou muitos grupos brasileiros. No banco de dados da Thomson Reuters, constam apenas 12 trabalhos relacionados com supercapacitores com a participação de brasileiros.

A Universidade de São Paulo (USP) e a Universidade São Francisco publicaram três trabalhos cada; a Universidade Estadual de Maringá tem dois, e as universidades federais de Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul e São Carlos publicaram um artigo. Em tempos de incentivo para a inovação tecnológica, esse é um cenário desanimador…

Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul