Como ensinar novos truques a uma coruja velha

Você não precisa levantar os olhos para saber de onde vem a voz que chama pelo seu nome. Mas se necessário, seus olhos encontram automaticamente o dono da voz, sem precisar procurar ao redor. Da mesma forma, a coruja-de-igreja ( Tyto alba ), excelente caçadora noturna, é capaz de se guiar somente pelos sons da sua presa da vez.

Corujas fazem isso graças a uma estrutura cerebral chamada teto óptico, que possui mapas detalhados do mundo tanto em coordenadas visuais, vindas diretamente da retina, como em coordenadas auditivas, baseadas na diferença de milésimos de segundo entre o tempo que um som, dependendo da posição da sua fonte, leva para chegar a cada uma das orelhas. Como a origem de um som costuma casar com a posição da sua imagem sobre a retina, a experiência do mundo ao longo da infância da coruja faz com que esses mapas visual e auditivo sejam perfeitamente alinhados. Assim, os sons de um camundongo a quatro metros de distância, 20 graus à esquerda farão com que a coruja dirija seu olhar automática e precisamente para o ponto situado quatro metros de distância, 20 graus à esquerda.

Com os mapas alinhados, a coruja fica mestra em atacar com precisão cirúrgica uma presa que ela apenas ouviu — a não ser que algum engraçadinho se divirta pregando-lhe uma peça. Enquanto camundongos não aprendem ventriloquia, o maior especialista em pregar peças em corujas é o neurocientista americano Eric Knudsen, da Universidade Stanford (EUA), que há anos estuda o processo de alinhamento dos mapas visual e auditivo no teto óptico de corujas-de-igreja.

Um dos instrumentos preferidos de Knudsen são prismas ajustados à cabeça das corujas, como se fossem óculos que fazem com que o mundo pareça estar até mais de 20 graus à direita ou esquerda de onde realmente está. O resultado é uma coruja que morreria de fome fora do laboratório: com prismas que desviam a imagem alguns graus para a direita, por exemplo, a coruja ataca sistematicamente à direita de onde sua presa de fato está — o suficiente para um camundongo, mesmo apavorado por ter acabado de tomar o maior susto da sua vida, dar o fora ileso.

Para a sorte das corujas, o cérebro logo aprende a lidar com a nova situação. Se os prismas são colocados em animais jovens, em dois meses a coruja ’de óculos’ volta a acertar seu alvo. O ajuste, essencial para a sobrevivência, ocorre no teto óptico, onde o mapa das coordenadas auditivas ’desliza’ para a esquerda ou para a direita exatamente o necessário para se realinhar com o novo significado do mapa visual — o qual, apesar dos prismas, mantém-se no lugar. Esse ajuste depende da insistência da ave, pois requer tentativa-e-erro; coruja alguma conseguirá reaprender a caçar se usar os prismas apenas para olhar ao redor.

Corujas mais velhas, no entanto, mal conseguem se adaptar à mudança, e mesmo ao final de vários meses o reajuste mínimo realizado no mapa auditivo fica muito longe de permitir ao animal se virar sozinho.

A incapacidade de reajuste das corujas mais velhas, descoberta por Knudsen no final dos anos 80, era compatível com a noção de ’período crítico’, ou seja, o período durante o qual o cérebro é capaz de sofrer grandes ajustes conforme a experiência, e que geralmente dura no máximo até a adolescência. Findo o período crítico, restaria apenas uma flexibilidade reduzida do cérebro, permitindo quando muito modificações pequenas. Assim funcionariam desde a formação da visão, perturbada definitivamente se cataratas, por exemplo, não forem corrigidas na infância, até a aquisição da linguagem, cujo período crítico termina no começo da adolescência.

A idéia é que o cérebro jovem ainda possui uma riqueza em conexões entre neurônios — as sinapses –, que servem como matéria-prima abundante para eventuais modificações. Como sinapses em excesso são eliminadas com o tempo, o cérebro adulto, com matéria-prima mais escassa, teria mais dificuldade para aprender e se ajustar a novas situações. (Não, não queira simplesmente dar um jeito de manter a abundância juvenil de sinapses pelo resto da vida: quando isso acontece em experimentos da natureza, o resultado é o retardo mental).

Mas nem tudo está perdido. Eric Knudsen e Brie Linkenhoker acabam de mostrar, em trabalho publicado em 19 de setembro na revista Nature , que corujas velhas ainda são, sim, capazes de se ajustar ao desvio prismático. É só uma questão de mudar aos poucos . Dê prismas de 23 graus a uma coruja adulta e ela de fato não conseguirá se ajustar à nova realidade visual; mas comece com um desvio modesto, de 6 graus, e avance aos poucos para 11, depois 17, depois 23 graus e sua coruja velha conseguirá aprender como você achava que ela nunca mais poderia.

Claro que a descoberta é importante por deixar claro, caso alguém ainda duvidasse, que o também o cérebro do animal adulto é capaz de aprender com a experiência, por maiores que sejam as limitações. Mas boa mesmo é a dica de que uma simples mudança de estratégia pode resolver aquele problema que parecia incontornável. No caso, a estratégia adequada para promover grandes mudanças em cérebros já rodados é ir aos pouquinhos — como naquela máxima, adorada pelas avós, segundo a qual mingau quente se deve comer pelas beiradas. Agora me digam: por que a avó da gente sempre tem razão?

Fonte: Linkenhoker B.A., Knudsen E.I. (2002). Incremental training increases the plasticity of the auditory space map in adult barn owls. Nature 419, 293-296.

Parthasarathy J. (2002). Plasticity and the older owl. Nature 419, 258-259.

Suzana Herculano-Houzel
O Cérebro Nosso de Cada Dia