Como medir o risco dos nanomateriais?

No final do século 19, logo após a descoberta dos materiais radioativos, alguns pesquisadores da área costumavam transportar, nos bolsos de seus paletós, pequenos frascos com amostras desses materiais. Às vezes eram impelidos por uma motivação fútil – exibir a beleza do efeito fosforescente nas reuniões sociais.

A franco-polonesa Madame Curie (1867-1934), uma das pioneiras da radioatividade, manipulava despreocupadamente materiais radioativos que ela aos poucos retirava de um monte com mais de uma tonelada, armazenado nos fundos do seu laboratório. Morreu vitimada por uma leucemia, provavelmente associada à exposição a esses materiais.

Guardadas as devidas proporções, os avanços da nanotecnologia poderão nos submeter a riscos similares àqueles pelos quais passaram esses ilustres antecessores.

Já apresentamos neste espaço inúmeros benefícios que a nanociência poderá nos oferecer. Praticamente todos os ramos industriais podem se beneficiar desses avanços científicos e tecnológicos. Mas, como é usual na exploração de inovações tecnológicas, pouco interesse desperta a investigação de possíveis danos à saúde e ao meio ambiente.

Pesquisas sobre riscos
Em artigo publicado este mês na Nature, Andrew Maynard e David Rejeski estimaram que, em escala global, a nanotecnologia movimente anualmente cerca de 40 bilhões de reais. Mas não se sabe ao certo o total de recursos investidos no mundo em pesquisas dedicadas à análise dos riscos dessa tecnologia sobre o homem e o meio ambiente.

Esse dado é conhecido no caso de países como os Estados Unidos. Do orçamento do governo norte-americano para pesquisas em nanotecnologia em 2008, estimado em aproximadamente 3 bilhões de reais, 59 milhões (ou cerca de 2% do total) foram destinados a pesquisas referentes aos impactos sobre a saúde e o meio ambiente. Em 2007, o governo chinês investiu cerca de 5 milhões de reais (12 vezes menos que os EUA) nessas áreas de pesquisa.

Já no Brasil, foram investidos cerca de 140 milhões de reais em pesquisas na área de nanotecnologia entre 2001 e 2006, mas não se sabe quanto desse total foi destinado aos estudos sobre riscos ambientais. Aparentemente quase nada, de acordo com notícia veiculada em 25 de outubro de 2006 pelo Labjor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp).

Nanobastões de óxido de zinco em solução aquosa. Qual o tamanho máximo para que um material possa ser classificado de nano? A questão divide os especialistas (foto: Universidade de Bristol).

Seja qual for a avaliação desses investimentos, em termos quantitativos, o sentimento geral é que as pesquisas de impactos sobre o meio ambiente e a saúde pública se encontram em uma fase muito incipiente.

Rumo ao Rima
Para começo de conversa, ainda não se chegou a um acordo quanto ao tamanho de uma nanopartícula. Costuma-se dizer que é algo com dimensões nanométricas (o nanômetro é a bilionésima parte do metro).

Mas é necessário ter um valor dessa dimensão para encaminhar protocolos de investigação e de regulação, se um dia quisermos estabelecer um Relatório de Impacto Ambiental (Rima) para os nanomateriais.

Define-se então nanopartícula como aquela que não ultrapassa 100 nanômetros em pelo menos uma das suas dimensões. Essa definição é importante quando se trata de regulamentação. O governo canadense, por exemplo, desde o início deste ano obriga a indústria a prestar informações sobre nanomateriais produzidos ou importados em quantidades superiores a 1 kg.

Um problema com a definição do que seja uma nanopartícula é que elas costumam formar grandes aglomerados na escala microscópica (o micrômetro é mil vezes maior do que o nanômetro). Em termos legais, teríamos nesse caso micromateriais, em vez de nanomateriais. No entanto, em muitos casos, a interação desses aglomerados com materiais biológicos e com o meio ambiente é governada pelas nanopartículas que formam o aglomerado, o que nos remete mais uma vez a uma instância nanométrica.

Efeitos sobre o corpo humano
Algumas das propriedades que fazem das nanopartículas interessantes para a indústria são justamente aquelas que as tornam potencialmente perigosas. Uma das aplicações mais fascinantes é na área de fármacos, tema tratado nesta coluna em três oportunidades ( aqui , aqui e aqui ). A ideia básica por trás disso é a utilização de nanopartículas para administração local de drogas no interior do corpo humano.

Nas colunas anteriores mencionamos alguns procedimentos utilizados para fazer chegar esses medicamentos nos locais desejados. As nanopartículas são geralmente feitas de materiais metálicos. Supunha-se, inicialmente, que a baixa dimensão e a pequena concentração facilitariam sua eliminação pelo corpo humano. Hoje se sabe que não é bem assim. Nanopartículas utilizadas nesses procedimentos foram posteriormente detectadas nos órgãos submetidos ao tratamento. Entre esses órgãos, incluem-se o cérebro e o sistema reprodutivo. 

Já há relatos na literatura de que, em situações de laboratório, nanopartículas conseguiriam retardar mecanismos de aglomeração de proteínas. Não se sabe ainda se esse fenômeno ocorre do mesmo modo in vivo.

Talvez não existam mais do que hipóteses sobre como tudo isso vai evoluir. Por isso mesmo, a opinião generalizada é que pesquisas deveriam ser implementadas para avaliar a interação dessas nanopartículas com o corpo humano.

Nanopartículas (em azul) envolvidas por proteínas (verde). Os efeitos dos nanomateriais sobre as células e proteínas ainda não são totalmente conhecidos (foto: Vicki Colvin/ Univ. Rice).

Nanotubos de carbono com comprimento superior a 20 micrômetros produzem efeitos inflamatórios similares àqueles resultantes da inalação de partículas de amianto. É provável que esse efeito seja produzido com a inalação de nanotubos de qualquer composição química. Portanto, investigações sistemáticas devem ser realizadas para correlacionar a dimensão de nanotubos e seus efeitos deletérios.

Por outro lado, qualquer sistema regulatório deve incluir mecanismos para certificação dos produtos industrializados quanto a esse aspecto dimensional. Protocolos analíticos para essa finalidade ainda não estão disponíveis.

Outra questão muito séria refere-se à possibilidade de as nanopartículas danificarem o genoma (genotoxicidade), uma vez que nanopartículas podem penetrar em regiões subcelulares, o que permitiria uma interação direta com o DNA. Atividade genotóxica já foi relatada em alguns casos específicos, principalmente associada à liberação de espécies reativas de oxigênio.

Defensores contumazes x críticos ferrenhos
São enumeradas acima algumas possibilidades de danos à saúde e ao meio ambiente associados às nanopartículas. A literatura especializada elenca uma grande variedade de outras possibilidades, que opõem defensores contumazes e críticos ferrenhos da nanotecnologia.

A linha do bom senso aponta para o estabelecimento de um sistema regulatório, que por sua vez desemboca na necessidade de pesquisas relacionadas com a ecologia dos nanomateriais. Embora a nanotecnologia esteja completando 50 anos, desde que foi invocada na famosa conferência de Richard Feynman, preocupações sérias com o efeito ambiental dos nanomateriais só começaram a surgir nos últimos anos.

Uma das primeiras iniciativas que se tem notícia foi a criação em 2003, na China, de um laboratório para o estudo dos efeitos dos nanomateriais sobre a saúde e o meio ambiente. Nos Estados Unidos, a primeira iniciativa foi proposta pela Agência de Proteção Ambiental (EPA, na sigla em inglês), em 2005. No ano seguinte, a União Europeia, por intermédio do Comitê Científico sobre Riscos à Saúde Emergentes e Recentemente Identificados (Scenihr, na sigla em inglês) patrocinou uma série de estudos referentes aos riscos dos produtos da nanotecnologia.

Não há notícia de iniciativas similares no Brasil, a não ser esforços de pequenos grupos sem grande apoio financeiro das agências governamentais. Só temos a torcer para que se articulem ações que nos ajudem a entender em todas as suas dimensões os efeitos dos nanomateriais sobre a nossa saúde e a do meio ambiente.


Carlos Alberto dos Santos
Colunista da CH On-line
Professor aposentado pelo Instituto de Física
da Universidade Federal do Rio Grande do Sul
24/07/2009