Tanto o termo comum quanto o conceito analítico de “comunidade” têm se espalhado em nosso mundo contemporâneo. Podemos encontrá-los em muitos contextos e condições diferentes, mas sua onipresença não lhes retira a importância, o caráter de pedra de toque da modernidade ocidental.
A palavra vem do latim, associada à ideia de comunhão e compartilhamento. Foi largamente utilizada no âmbito da cultura cristã, para significar diferentes níveis de afirmação do ideal de fraternidade terrena cultivado nesse meio. A concepção de unidades territoriais organizadas como congregações religiosas passou aos EUA, sustentando um elemento fundamental da ordem política ainda vigente no país: as “comunidades locais”.
A partir do século 19, o termo passou a encarnar a resistência às grandes transformações características da modernidade, como a urbanização, o industrialismo, o desenraizamento da população (incluindo as migrações de força de trabalho), o anonimato, a ruptura das relações de respeito e solidariedade.
Graças ao trabalho clássico do sociólogo alemão Ferdinand Tönnies, essa ideia foi transformada num conceito bem delineado, ainda que fortemente dependente do contexto histórico de sua emergência. Tönnies opôs a comunidade à sociedade, considerando a última característica da modernidade e oposta a uma ordem tradicional, de comunhão coletiva, já então considerada ameaçada.
Numerosos foram desde então os movimentos que buscaram construir “comunidades” no mundo ocidental, recusando de alguma forma as bases da construção das sociedades modernas. Os próprios movimentos socialistas, sobretudo aqueles chamados de “utópicos” (em oposição aos revolucionários), compartilharam de muitos dos ideais comunitários.
Já no século 20, inspirados pelo espírito de renovação do Concílio Vaticano II e pela Teologia da Libertação, surgiram no Brasil as Comunidades Eclesiais de Base católicas, importante nó das transformações sociais que lastrearam a redemocratização dos anos 1980.
Por outro lado, a disposição de afastar o estigma que pesava sobre as favelas e bairros precários das periferias metropolitanas suscitou a adoção do eufemismo “comunidade” para se lhes referir. Enfatizou-se assim a dimensão política de tais grupos, irmanados por lutas coletivas. Embora certas características da forma sociológica da comunidade aí efetivamente prevaleçam, como a das relações face-a-face, muitas lhe faltam, como uma relativa homogeneidade cultural e moral.
Ideais e enfrentamento
Em 2010, editei, juntamente com Patricia Birman, um número temático da revista Religião e Sociedade, dedicado à apresentação e discussão de diversos focos empíricos da ideia de comunidade. Cito aqui apenas um deles, tratado por Luciana Braga, que expõe o fenômeno da comunidade dos proprietários de Reservas Particulares do Patrimônio Natural (RPPNs), legalmente definidas como terras privadas, perpetuamente dedicadas ao objetivo de conservação da diversidade biológica.
Trata-se de uma extensão peculiar da noção, aí aplicada a uma rede de sujeitos sociais geograficamente dispersos e socialmente bem situados, unidos pela disposição em colocar seu status socioeconômico a serviço do ideal da proteção ambiental. Para alguns deles, essa posição se sustenta mesmo sobre uma concepção mística das responsabilidades ecológicas contemporâneas, associáveis ao horizonte de valores chamado de “Nova Era”.
Duas teses recentes, de cujas bancas participei, trataram do tema a propósito de situações sociais completamente diferentes. Uma se dedica à compreensão da comunidade católica carismática chamada Canção Nova. A instituição surgiu no final da década de 1970 no interior de São Paulo e se caracteriza por considerar que dispõe de um carisma sobrenatural que a habilita à evangelização por meio da comunicação de massa.
A outra situação é a de uma aldeia no interior de uma Reserva Extrativista no extremo sul do Estado do Amazonas, composta por descendentes dos nordestinos levados ao trabalho nos seringais por força das secas de sua região de origem e hoje irmanados pela participação no Santo Daime (organização religiosa frouxa associada ao consumo do ayahuasca, um poderoso alucinógeno de origem amazônica).
A primeira é uma instituição ligada à Igreja Católica e sediada em um contexto urbano, com um afluxo de membros de camadas médias letradas. Além da vida propriamente comunitária, localizada, atende a uma clientela muito vasta, que vem compartilhar de seu valor religioso nos rituais locais ou acompanha o trabalho evangelizador televisivo. Já existem inclusive expansões no exterior.
A segunda é um agrupamento discreto de pequenos proprietários rurais, todos aparentados entre si, socializados na cultura cabocla amazônica, com sua tradicional dimensão católica popular. Apresenta uma característica notável: ter conseguido fazer aprovar uma reserva extrativista na região que ocupam, em parte inspirados na disposição protetora em relação à natureza, que decorre dos ensinamentos do Santo Daime.
Em todos esses casos o que avulta é a defesa de um estado ideal, de uma certa elevação moral, considerada capaz de sustentar uma disposição comum de enfrentamento das difíceis condições de reprodução física e mental do mundo moderno. Podem estar envolvidos desafios políticos, pendengas jurídicas, estados alterados de consciência, reelaboração das tradições culturais, disposições de renúncia social ou de intenso comprometimento público.
Também dessas tramas depende o destino de nossa modernidade.
Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Bonfim, Evandro de Sousa. “A Canção Nova: circulação de dons, mensagens e pessoas espirituais numa comunidade carismática”. Tese de Doutorado, PPGAS/Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, 2012.
Braga, Luciana. Entre donos e guardiões: a natureza como propriedade particular. Religião e Sociedade, vol.30, n. 2 (número temático sobre “Comunidade”).
Tönnies, Ferdinand. “Comunidade e Sociedade”. In Miranda, Orlando (Org.). Para Ler Ferdinand Tönnies. São Paulo: Edusp, 1995 [1887].
Turner, Victor. “Liminaridade e Communitas”. In O Processo Ritual. Petrópolis: Vozes, 1974 [1969].
Vieira, Marina Guimarães. “Caboclos, Cristãos e Encantados: Sociabilidade, Cosmologia e Política na Reserva Extrativista Arapixi, Amazonas”. Tese de Doutorado, PPGAS/Museu Nacional/UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, 2012.