A Antártica é um dos lugares mais inóspitos da Terra. Talvez por isso tenha sido um dos pontos do globo que mais interesse despertou no homem. A história do continente se inicia quando – segundo conta a lenda –, ainda no século 17, um navio peruano, aparentemente à deriva, avistou uma “ilha”. Entre os que deram notoriedade ao continente está o explorador inglês James Cook (1728-1779), que circundou a Antártica e registrou a presença de uma grande massa continental na região mais ao sul da Terra. Desde então, várias expedições foram realizadas ao continente gelado, despertando um interesse cada vez maior nos cientistas. No ano passado tivemos até mesmo dois pesquisadores brasileiros da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) alcançando o pólo Sul geográfico.
Hoje em dia, muitos países têm bases na Antártica e procuram desenvolver trabalhos de pesquisa nas mais diferentes áreas. O Brasil também tem participado por meio do Programa Antártico Brasileiro. Implementado em 1982, o Proantar mantém a base Comandante Ferraz – nome dado em homenagem ao capitão-de-fragata Luiz Antônio de Carvalho Ferraz, um dos primeiros brasileiros a trabalhar com o tema. Mantido pelo CNPq, esse programa tem possibilitado aos pesquisadores brasileiros realizar estudos científicos em diversos campos, com o intuito de contribuir para um melhor entendimento da região.
Entre esses estudos, um dos destaques é a descoberta de seis novas espécies de moluscos bivalves fósseis da Antártica, feita por pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade Estadual Paulista (Unesp). O trabalho acaba de ser publicado na revista científica Alcheringa .
O material foi encontrado na ilha Rei George, situada na parte oeste da Antártica. Trata-se de dezenas de exemplares, 113 dos quais foram utilizados no estudo coordenado por Luiz E. Anelli, pesquisador da USP. O material é todo procedente da Formação Cape Melville, cuja idade é estimada em cerca de 20 milhões de anos, situada no Mioceno Inferior. O interessante é que diversos fósseis dessas rochas já foram estudados, como braquiópodos, equióides, crustáceos, cefalópodes, corais e até plantas, além de diversos microfósseis. Ao que tudo indica, vertebrados ainda não foram encontrados nesses depósitos, que se formaram em um ambiente marinho.
Com relação aos bivalves encontrados, o destaque cabe ao fato de eles estarem muito bem preservados, permitindo, inclusive, a observação da inserção muscular. Para bivalves (e outros animais com conchas), esse tipo de informação é muito importante do ponto de vista sistemático, por possibilitar uma classificação precisa. Trocando em miúdos: o material é tão bem preservado que ajuda a estabelecer de forma detalhada a relação desses fósseis com outras formas encontradas, particularmente nos continentes ao sul da linha do Equador. Com esse dado, pode-se estabelecer as rotas de dispersão usadas pelos invertebrados marinhos que invadiram a plataforma antártica a partir do oceano Atlântico, que possui águas mais quentes.
Entre as espécies encontradas, duas pertencem ao gênero Ennucula , que ainda se observa nos dias de hoje, na Austrália. As espécies fósseis são Ennucula frigida e E. musculosa e se distinguem, entre outras coisas, pela ornamentação externa da concha e pelo maior tamanho da última. Também foram encontrados representantes fósseis dos gêneros Neilo (que ocorre atualmente na Nova Zelândia) e Limopsis (presente no oceano Atlântico), além de formas fósseis de Yoldia e Periploma – todos de depósitos cenozóicos. Esta última aparenta ser exatamente igual à espécie Panopea regularis , da Formação Puerto Mandryn, na Argentina, que tem idade semelhante.
Além de aumentar a diversidade da fauna de moluscos bivalves conhecida da Antártica, a pesquisa brasileira mostrou que existe muito ainda a ser descoberto no continente gelado. E é muito bom que o Brasil também esteja fazendo parte desta conquista.
Alexander Kellner
Museu Nacional / UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
07/07/2006
Paleocurtas
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