Correção em excesso

No excelente texto da atriz e escritora Fernanda Torres sobre Spalding Gray, na revista Piauí 109, tropecei na seguinte construção: “O carma do suicídio e a obsessão com a morte são temas frequentes, como também uma curiosidade infantil, uma abertura para o mundo que o permite entrar no carro de um desconhecido…”.

Não tenho certeza de que o leitor tenha tropeçado no mesmo lugar que eu: a forma que, em tese, não deveria aparecer no texto da autora, da qual se pode dizer que domina totalmente as normas gramaticais requeridas nos seus textos mais típicos (colunas de opinião ou ensaios em jornal), é o pronome “o”, em “o permite”. É um caso exemplar (e raro) de hipercorreção.

Hipercorreção é correção em excesso. Sua ocorrência mais típica se dá em casos que envolvem falantes cuja escolaridade é pouca e que, por alguma razão (subir na vida, por exemplo), acham que precisam abandonar seu dialeto de origem. 

Hipercorreção é correção em excesso. Sua ocorrência mais típica se dá em casos que envolvem falantes cuja escolaridade é pouca e que, por alguma razão, acham que precisam abandonar seu dialeto de origem

Há casos bem marcados: por exemplo, quem diz originalmente “forga” ou “carça” (por ‘folga’ e ‘calça’), ao descobrir que este ‘r’ é, digamos, caipira (e alvo de gozação), corrige estas formas e muitas outras, por analogia: começa a dizer, por exemplo, “solvete” (ou “souvete”, porque o que importa é eliminar este ‘r’, variante de ‘l’, em final de sílaba). 

Às vezes, o fenômeno só é perceptível na escrita, como em “Blumenal”, “Polpa Tempo” etc. Também ocorre o fenômeno inverso: eliminar o ‘l’ e inserir um ‘u’, como em “fraudinha”, em muitos açougues, uma espécie de hipercorreção da hipercorreção.

Em geral, o fenômeno envolve uma forma condenada como erro (pela escola, pela sociedade). O ‘r’ dito caipira, a falta de concordância verbal, a próclise. Assim se explicam “solvete” e “Polpa Tempo”, mas também “haviam muitas pessoas”, “fazem dez anos” e ênclises no lugar de próclises cultas, como em “… que explicou-se”, “… não deu-se conta” etc. 

Como se sabe, são comuns na fala popular construções como “os menino saiu”: assim, a escola pressiona para que as concordâncias sejam feitas (meninos saíram). Esta pressão se espalha também para casos em que ela deveria ser contida (havia pessoas, faz 10 anos). 

Um parêntese: o que vale para ‘haver’ vale para ‘ter’, quando este verbo substitui aquele. É o que se vê na coluna de Marcelo Rubens Paiva (Estado de S. Paulo, 24/10): “O comandante do II Exército […] denunciava que tinham comunistas…”. Segundo as tradicionais gramáticas, ele deveria ter escrito “que havia comunistas”: fez uma concessão ao informal (ter) e incidiu em uma hipercorreção (tinham). 

O mesmo vale para a colocação dos pronomes átonos, já que o português do Brasil é nitidamente proclítico: “me diga / me dá / me fala / te amo” etc. A gramática normativa pressiona para que muitas destas construções sejam ‘corrigidas’. O resultado é a hipercorreção: pratica-se ênclise mesmo quando a próclise é de lei. É bem claro que este caso (bem como “haviam / fazem”) é típico da fala de pessoas mais escolarizadas, que, no entanto, não estão seguras em relação às regras que aprenderam na escola.

 Outros casos notórios são “menistro” (já que “minino” é ‘menino’, ‘ministro’ deve ser “menistro”), “telha de aranha” (já que “teia” de “teiado” é ‘telha’ de ‘telhado’, ‘teia de aranha’ também deve ser “telha de aranha”), “pilha de louça” (se “meu fio” é ‘meu filho’, ‘pia do banheiro’ deve ser “pilha de banheiro”), “vitror verde” (“dotô” é ‘doutor’, ‘vitrô’ deve ser “vitror”).

Deve ser complicado, para o falante inseguro, decidir qual forma deve escolher quando as duas existem (pia / pilha; teia /telha; polpa / poupa etc.).

Quando o certo soa errado

A ocorrência de “o” por ‘lhe’ no texto de Fernanda Torres é bem especial e bastante complexa. Tento explicar.

As formas pronominais de objeto direto (o / a / os / as – e suas variantes lo / no) estão em franco desaparecimento no Brasil. Trata-se de um fato (não de uma opinião). Elas só são aprendidas na escola. Isto é, mesmo na fala de famílias letradas, o emprego destas formas é raro, se não nulo. 

Sendo assim, a novidade é muito valorizada: fazem-se muitos exercícios na escola para tentar ‘fixar’ seu emprego. 

Na fala normal, os brasileiros, mesmo bastante letrados, dizemos “ele/ela” na posição de objeto: “vi ela na faculdade/comprei ele na livraria da esquina/você ama ela/ele?” etc. Mas estas formas são condenadas

Na fala normal, os brasileiros, mesmo bastante letrados, dizemos “ele/ela” na posição de objeto: “vi ela na faculdade/comprei ele na livraria da esquina/você ama ela/ele?” etc. Mas estas formas são condenadas. Por isso, em situações formais, tipicamente na escrita, os falantes fazem um grande esforço para empregar as ‘corretas’.

Mattoso Câmara propôs, em texto já antigo, que, no afã de evitar o erro (vi ela), e diante da falta de intuição para empregar os pronomes retos (vi-a), acabamos por empregar como objeto direto a forma “lhe” (“venho lhe convidar”, em vez de “venho convidá-lo/a”). 

Ou seja: a forma que se instalou como correta é o pronome que funcionava como objeto indireto (como em “dei-lhe um livro”, que hoje é “dei um livro pra ele/a” etc.). Ora, na escola, construções como “convidar-lhe” também são corrigidas. A escola não quer só substituir ‘ele/ela’ por ‘o/a’; quer também impedir a ocorrência de ‘lhe’ objeto direto, ou seja, introduzir ‘o/a’ também nestes casos, fazendo uma segunda correção. 

Qual é o efeito? O efeito é que ‘lhe’ também fica estigmatizado, ou seja, soa como um erro. No esforço de acertar, acaba-se por empregar ‘o’ também no lugar do ‘lhe’ legítimo. Como se a substituição de ‘lhe’ por ‘o’ em verbos transitivos diretos implicasse sua substituição em todos os verbos. 

Foi o que aconteceu com Fernanda Torres: em vez de ‘lhe permite’, empregou “o permite”. Se isto aconteceu com ela, e se uma revista como a Piauí não se deu conta, se não fez a revisão pontual, significa que a intuição (o saber gramatical) que levaria a empregar a forma esperada em textos como este desapareceu. A atriz / escritora deve ter aprendido estes pronomes na escola. Mas exagerou. Também ela. 

(Não estou defendendo, nem acusando, as gramáticas escolares, aqui: estou comentando fatos; mas, se pudesse dar uma aula sobre a questão, separaria os casos: uma coisa é corrigir grafias como “polpa tempo”; outra é tentar impedir que se empregue ‘ter’ no lugar de ‘haver’ – para ficar em dois exemplos).

Sírio Possenti
Departamento de Linguística
Universidade Estadual de Campinas