Corte de emissões por EUA e China: pouco e tarde

No último dia 12, os presidentes Barack Obama e Xi Jinping assinaram em Pequim um acordo para reduzir as emissões de gases de efeito estufa (GEFs) em seus respectivos países.

Como até agora a China ainda não havia se comprometido com metas de redução, o acordo é digno de nota. Cabe destacar também o anúncio conjunto de metas voluntárias de redução por parte de dois países que, juntos, emitem cerca de 45% dos GEFs que a humanidade injeta na atmosfera. O acordo prevê o corte de 26% a 28% das emissões até 2025 pelos Estados Unidos.

Já os chineses se comprometem a cortar as emissões até 2030, embora possam começar antes. Em outras palavras, seu pico de emissão ocorrerá em 2030, ou antes, o que significa que as emissões seguirão crescendo até lá. Ah, mas quando 2030 chegar, 20% das fontes energéticas chinesas serão renováveis! Já o bloco europeu se comprometeu no mês passado a cortar 40% de suas emissões até 2030, tomando por base as emissões de 1990.

Comemorar que as emissões chinesas serão reduzidas apenas a partir de 2030? Sei não… Parece pouca esmola para o tamanho dos milagres necessários

Acordo histórico entre os dois maiores poluidores, voluntário, informal, anunciado um ano antes da próxima conferência do clima, etc. Ótimo. Mas comemorar que as emissões chinesas serão reduzidas apenas a partir de 2030? Sei não… Parece pouca esmola para o tamanho dos milagres necessários.

Serão 16 longos anos de espera pela frente, vendo o mar subir, as últimas geleiras derreterem, as torneiras secarem e o fluxo de refugiados ambientais aumentar, assim como os preços de água, alimentos, energia e sossego.

Como toda moeda, o acordo tem duas faces. Pode servir de exemplo virtuoso (cortemos já!) ou de exemplo esperto (também cortarei, juro, mas como a China, só mais adiante).

Tudo bem, o padrão de extremos climáticos, escassez e incerteza crescente talvez force, dolorosamente, a revisão das metas de corte, para cima. Vocês que me leem regularmente nesta coluna sabem: sou um otimista incurável.

Cá entre nós

Enquanto isso, o Brasil preferiu não comentar. Fez bem, pois o momento não é dos melhores para chamar a atenção externa sobre nossas emissões. Divulgou-se com destaque o inventário brasileiro de emissões para o período 2004-2012, mostrando redução de 52% em relação ao que emitíamos em 2004, devido principalmente à redução do desmatamento na Amazônia no período.

Ouvi do Ipiranga as margens plácidas etc. Fogos (melhor não, nessa secura), canapés e… Chega, porque essa glória faz parte do passado, e o presente não é propício a celebrações.

Após o período do inventário, aprovou-se um código florestal (sic) na exata contramão do beabá da sustentabilidade e razoabilidade. Perdão para desmatamento passado, facilidades para desmatamento futuro e, cereja no sundae, redução das faixas de proteção de cursos d’água.

Área desmatada
Área desmatada na Amazônia brasileira. De acordo com a organização não governamental Imazon, o desmatamento na região aumentou mais de 200% de maio a setembro deste ano. (foto: Ana Cotta/ Flickr – CC BY 2.0)

As margens plácidas do Ipiranga e de todos os nossos rios ficarão assim mais expostas ainda a assoreamento e erosão, e o ciclo da água, já bem comprometido, ficará mais ainda. Profecia funesta? Quem dera! O Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia (Imazon) calcula que apenas de maio a setembro deste ano o desmatamento aumentou 214%. Já o ciclo da água… Deixa pra lá.

Poluição e (i)mobilidade urbana

Preso no permanente engarrafamento, me pergunto se o crescimento das emissões veiculares, que cresce à medida que cai a velocidade do trânsito no caos da imobilidade urbana, foi considerado na planilha do inventário.

Considerado ou não, todos os sinais vão no sentido da piora: nova isenção de IPI para automóveis, mais subsídio para petróleo e gás, priorização do transporte individual, corrupção e ineficiência sistêmicas nos sistemas de transporte urbano, timidez exasperante no estímulo à energia limpa (eólica, solar, nuclear e das marés) e nas campanhas pela eficiência e contra o desperdício.

Cerca de 75% dos leitos das UTIs de nossos hospitais públicos são permanentemente ocupados por motociclistas, assim como os serviços de fisioterapia

Sem esquecer as usinas térmicas a gás, que estão a mil para compensar represas à míngua, e o crescimento expressivo da presença do carvão em nossa matriz energética. Sim, o carvão, o combustível mais sujo e – depois da lenha – mais antigo que conhecemos. Desconfio que o próximo inventário de emissões talvez seja menos ufanista. Mas no momento já temos fartas evidências para profunda reflexão.

Senão, vejamos: na falta de soluções coletivas, parte-se para a solução individual. Um exemplo é a explosão do número de motocicletas no país. Resultado? Cerca de 75% dos leitos das UTIs de nossos hospitais públicos são permanentemente ocupados por motociclistas, assim como os serviços de fisioterapia.

Os custos são enormes: prejuízos materiais, custos de sepultamento ou tratamento e (longa) reabilitação, perda do investimento social em educação e saúde até o acidente e perda da capacidade produtiva da vítima a partir do acidente.

Sem falar no noivado que se desmanchou, no bebezão lindo que não nasceu e naquela viagem a Gramado que não vai rolar. Não tem preço. Mas tem custos, que sempre acabam gerando consequências ‘monetarizáveis’, se alguém se der ao trabalho de olhar direito.

Motociclista
Nas grandes cidades brasileiras, a emissão de gases produzidos pela queima de combustível fóssil aumenta, à medida que a velocidade do trânsito cai. Além disso, cresce o número de motocicletas e de acidentes com motociclistas. (foto: João Perdigão/ Flickr – CC BY-NC 2.0)

Ok, o trânsito mata. Grande novidade! Mas quem transita? Veículos individuais, movidos a combustíveis inflamáveis e explosivos, que andam em sentidos, direções e velocidades que são deixados ao arbítrio de seres humanos geralmente masculinos e desacompanhados, em vias sem divisórias. É obvio que não podia dar certo.

Nananinanão!

Ora, direis, mas com toda essa testosterona automotiva, até um mundo de carros elétricos teria um trânsito assassino. Nananinanão! Primeiro, as batidas não gerariam explosões, incêndios, corpos calcinados e outras alegrias hollywoodianas.

Muito mais importante que isso, vamos lá, pense um pouquinho… Não haveria barulho? Ok, muito menos, com certeza, mas ainda não é isso. Não haveria emissões de GEFs? É verdade, seriam mínimas, o que é ótimo para o clima. Está esquentando… Ãh, deixa ver… As cidades, onde vivem quase 80% dos terráqueos, deixariam de ser ilhas de calor fedorento e sufocante, enxergaríamos o horizonte e não haveria mais piche na areia da praia? Está quase: você disse “ar sufocante”.

Atualmente, a poluição do ar, devida ao trânsito caótico movido a petróleo, mata mais do que os acidentes, causas mais óbvias e espetaculosas do trânsito

Pois é, não é força de expressão: atualmente, a poluição do ar, devida ao trânsito caótico movido a petróleo, mata mais do que os acidentes, causas mais óbvias e espetaculosas do trânsito. Acidentes envolvem quem transita e quem não sai da frente; já o ar poluído provoca morbi-mortalidade em todos os que respiram.

É muita gente, e muito bicho. E também afeta plantas, musgos, liquens; estraga a pele, o cabelo, a pintura do carro (bem feito), as esculturas do Aleijadinho e a única fotografia do seu bisavô.

Quer números? Você pediu. Segundo o Instituto Saúde e Sustentabilidade, ligado à Universidade de São Paulo, os acidentes de trânsito no estado do Rio de Janeiro fizeram 3.044 vítimas fatais em 2011, enquanto as mortes atribuídas à poluição chegaram a 4.566. Em São Paulo, a estimativa para o mesmo ano é de que a poluição causou o dobro de mortes (15.700) em comparação com o trânsito (7.867).

E assim voltamos aos céus cinzentos da China. Até a data prevista para que o país comece a reduzir suas emissões, 2030, o Instituto Saúde e Sustentabilidade calcula que a poluição matará, em São Paulo, cerca de 256 mil pessoas. Quantas matará no Brasil todo, nos Estados Unidos, na China?

– Alô, Obama, Xi Jinping, Dilma?

Hi… caiu.

Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro