Um dos tópicos mais favoráveis à emergência de desentendimentos entre cientistas sociais e colegas de outras áreas é o da religião ou crença. Embora haja muitos cientistas que não se considerem ateus ou agnósticos, a imensa maioria tende a considerar o empreendimento científico em si diametralmente oposto a qualquer coisa que cheire a místico ou religioso, inquietando-se enormemente com ameaças de intrusão da superstição na seara da razão.
Quase todos ignoram que possa existir algum tipo de análise ou interpretação dos fenômenos religiosos – e que a antropologia dedique-se intensamente a essa tarefa. Na medida em que nos dispomos a conhecer o sentido da vida humana, nada nos interpela mais que o conhecimento das ubíquas, permanentes e intensas experiências e crenças religiosas.
Um dos primeiros pontos a esclarecer é o próprio foco do problema. Embora se considere em nossa cultura que exista uma área da vida social que se pode reconhecer facilmente como “religiosa” (templos, divindades, espíritos, rituais, crenças, orações, devoção etc.), essa não é a realidade na maior parte das culturas. E, na verdade, não é sequer inteiramente na nossa.
Do ponto de vista mais abstrato possível, considera-se como “religiosa” a dimensão de cada sistema simbólico que se ocupa das ordens mais abrangentes de significado, sejam elas cósmicas, morais ou cognitivas. Assim, na cultura chinesa clássica, o confucionismo desempenhava, a nossos olhos, um papel religioso – embora nem sequer exista uma palavra chinesa que traduza sem esforço as categorias herdadas do latim religio.
Ocorreu-me tratar de tão espinhosa questão ao ler a tese recente de Flávio Gordon intitulada ‘A cidade dos Brights: religião, política e ciência no movimento neoateísta’, defendida no Museu Nacional.
O autor se debruça sobre a recente construção de um ateísmo militante, portado sobretudo por cientistas naturais, que inclui o movimento chamado “bright”. O termo foi escolhido para valorizar a atitude ateísta, ao modo como a adoção do termo positivo “gay” teria sido eficiente para o movimento de afirmação homossexual.
Gordon endossa um juízo presente na literatura que considera o movimento uma “espécie de fenômeno religioso”; chegando-se mesmo a falar de “ateísmo militante”, “ateísmo fundamentalista” ou “ateísmo evangélico”.
Mais especificamente, o autor qualifica essa forma exacerbada do secularismo moderno, do materialismo iluminista, como uma retomada da tradição da Gnose dos primeiros séculos cristãos, uma heresia associada à revolta contra a Criação, ao desprezo pelo mundo tal como se apresenta e à busca de uma superação pelo conhecimento.
Ideologia cristã
O paradoxo de um ateísmo religioso é uma boa introdução à série de paradoxos que cerca o trato científico de tais questões em nossa cultura. A ideia de religião que atravessa o senso comum ocidental é uma reverberação do cristianismo, a ideologia religiosa central de nossa tradição.
Trata-se de uma “religião de salvação” e – como tal – lida com uma peculiar combinação entre este mundo e um além (objetivo da salvação, justamente). Uma sólida literatura associa alguns de seus princípios cosmológicos centrais ao cerne mesmo da cultura ocidental.
O principal é o de sua ênfase na salvação de uma alma pessoal, estritamente individualizada, em função da combinação entre pecado original e livre-arbítrio. Essa ênfase individualista implica uma adesão consciente à experiência religiosa (uma conversão) e não um simples pertencimento a uma comunidade.
Também é fundamental o fato de que ela aspira a uma transcendência sempre fortemente atrelada à imanência: toda a vida do Cristo é uma costura fascinante entre espírito e matéria, carregada de duradouras implicações simbólicas.
Esse naturalismo sempre distinguiu fortemente a cultura cristã das demais religiões de salvação. E acabou marcando o destino da noção de verdade intrínseca a uma promessa de salvação: da verdade revelada, transcendente, passou-se à busca de uma verdade pela razão na própria carne do mundo.
Individualismo e naturalismo continuam sendo duas premissas de nossa visão de mundo – como alicerce do secularismo moderno e fundamento de nossas construções da política e da ciência.
Cruzada antirreligiosa
A noção de verdade científica é, num certo sentido, diametralmente oposta à de uma verdade revelada; mas o modo social pelo qual é desejada, buscada, construída em práticas intelectuais precisas, está impregnado das matrizes de nossa cultura cristã, de uma tradição cultural profundamente internalizada.
Richard Dawkins, o cientista britânico que tem sido o mais vocal dos defensores do movimento neoateísta, está atento às críticas que se dirigem a sua cruzada antirreligiosa e tem mesmo um artigo dedicado a sua refutação.
Pode-se perceber que sua ira se dirige a uma forma de religiosidade característica do cristianismo (e de algumas outras poucas religiões de salvação, como o islamismo) e se nutre claramente do sentimento de uma competição com as estruturas e cânones eclesiais em que se institucionalizaram as numerosas variedades da cultura cristã.
Isso está muito distante do entendimento de que as religiosidades são formas simbólicas estruturantes da possibilidade do estar no mundo, de dispor de um sentido do mundo – a priori (como sublinhava o sociólogo francês Marcel Mauss).
Compreender que a experiência religiosa é a forma básica da existência simbólica do ser humano não quer dizer que se devam aceitar as posições das atuais igrejas estabelecidas contra as formas laicas, libertárias, que assumiram os valores cristãos na contemporaneidade; mas sim compreender sua complexa constituição e necessidade social – até mesmo para melhor propiciar a abertura aos novos formatos prezados pelas vanguardas ocidentais.
É no sentido de que a modernidade exige a defesa de valores cosmológicos estruturados e estruturantes que se pode dizer que carregue também uma ordem “religiosa”. É um modo diferente, é certo; mas todas as religiosidades diferem profundamente entre si, mesmo aquelas que não o são de modo paradoxal.
Premissas simbólicas
Crença é uma categoria carregada de conotações culturais específicas. Vem de uma raiz latina associada ao crédito, ou seja, àquilo em que se pode confiar, e se desenvolveu como uma dimensão fundamental da moral cristã – sinônimo da fé – enquanto sinal da disposição em não ceder à dúvida, em aceitar a revelação.
É assim uma noção básica de nossa cosmovisão, subjacente às formas da verdade moderna. Nós, os que cremos na ciência, acreditamos que se trata de uma forma mais adequada de chegar à verdade (paradoxalmente definida como uma dúvida sistemática); outros creem que o livro da gênese contém a narrativa verdadeira sobre a origem da humanidade.
Isso é verdadeiro em um determinado nível da circulação de tais crenças; mas não para todos. Para a grande maioria das culturas humanas (e mesmo para a grande maioria da população das sociedades contemporâneas), tais questões não se impõem como crenças, mas como premissas simbólicas a priori. Como já definia o antropólogo francês Jean Pouillon, “é o descrente que crê que o crente crê”.
Vê-se, assim, que não há uma experiência uniforme do religioso; não há mesmo uma definição de religião que não abarque uma infinidade de formas e vivências constituintes da condição humana.
Tratar de tão graves questões nesta curta nota, para um público amplo, incorre sérios riscos de mal-entendido, abrindo-se o alvo para a ira tanto dos religiosos quanto dos cientistas naturais – e até mesmo de muitos antropólogos (que sempre se digladiam sobre as questões aqui ventiladas).
Há, porém, um alto interesse e urgência em advertir para a legitimidade da reflexão e busca de compreensão dos fenômenos religiosos, quer se os defina de modo estrito ou lato, restringindo-os às formas institucionalizadas da crença e do sentimento de reverência ou compreendendo-os de forma abrangente, como construção simbólica do mundo.
Afinal, a busca dos sentidos do mundo que defendo aqui como foco da crítica antropológica foi o objeto sistemático das ideologias religiosas durante a quase totalidade da experiência cultural humana – e continua a sê-lo para a maioria das gentes. Eis uma comunhão de foco; eis uma diferença – crucial – de método.
Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Brown, Peter. Corpo e sociedade. O homem, a mulher e a renúncia sexual no início do cristianismo. Rio: Zahar, 1990.
Dawkins, Richard. Deus: um delírio. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. Dumont, Louis. O Individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 2000.
Foucault, Michel. História da sexualidade, 3: o cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 2009 [1984].
Pouillon, Jean. Remarques sur le verbe croire. In Michel Izard e Pierre Smith (orgs.), La fonction symbolique. Paris: Gallimard, 1979.