Crônica de uma tragédia anunciada

O mundo inteiro acaba de acompanhar ao vivo o resgate heroico dos 33 mineiros que estavam presos a 700 metros de profundidade no Chile desde o dia 5 de agosto.

Tiveram muita sorte: sobreviveram ao desabamento que provocou seu longo isolamento, contaram com túneis onde havia um mínimo de suprimentos que lhes permitiram sobreviver com uma dieta de faquir até que as equipes na superfície pudessem cavar um duto de 10 cm de diâmetro. Por esse cordão umbilical receberam, durante mais de dois meses, alimentos, água, notícias e outros suprimentos essenciais à sua sobrevivência física e mental.

Na superfície, montou-se uma Disneylândia tecnológica onde três empresas de engenharia – cujos logotipos eram bem visíveis na transmissão televisiva – puseram em marcha diferentes opções de resgate, das quais, como vimos, uma deu certo, e mais rápido do que o previsto.

A onda de ufanismo global ofuscou as razões que provocaram o acidente na mina chilena

O episódio promoveu uma imensa união nacional que favoreceu o presidente chileno, assim como o ataque às torres gêmeas do World Trade Center em Nova York beneficiara George W. Bush. Milhares de chilenos saíram às ruas das principais cidades do país desfraldando bandeiras assim que o resgate foi concluído, repicaram os sinos de todas as igrejas e soaram as sirenes de todos os quartéis de bombeiros.

Que bom. E que pena. Por que “que pena”? Como todo mundo, torci pelos mineiros, claro, mas é claro também que essa onda nacionalista e de ufanismo global ofuscou as razões que provocaram esse acidente.

Queda de braço

Para começar: foi um acidente ou a crônica de uma tragédia anunciada? Fico com a segunda opção: os mineiros estavam trabalhando a 500 metros de profundidade e, ao receberem ordens para descer mais fundo, recusaram, devido à falta de segurança. Como eles não são funcionários públicos estatutários, o empregador privado ganhou a queda de braço, e lá foram eles para seu longo e quase fatal calvário.

No meio de tanta comemoração, esse fato relevante ficou em segundo plano, assim como outro tão relevante quanto, a saber, o de que inspetores de ministério do trabalho chileno haviam notificado a empresa de mineração pouco antes do acidente, pois julgaram que o número de estruturas de reforço e escoramento nas galerias da mina era temerariamente baixo.

Ao receberem ordens para descer mais fundo, os mineiros recusaram, devido à falta de segurança

No entanto, alguém acima dos fiscais na hierarquia do ministério avaliou que isso não justificava a suspensão das operações. Deu no que deu.

Deve ser difícil a vida de fiscais do trabalho de mineração num país que é fortemente dependente dessa atividade e cujas estruturas de controle e fiscalização ainda não se recuperaram do longo pesadelo da era Pinochet. E não esqueçamos que o presidente Piñera é ele próprio um grande empresário.

Portanto, no caso chileno não foram necessários terroristas irascíveis de um país distante – bastou a promiscuidade habitual do Estado e da iniciativa privada.

“Acidentes de trabalho”

Há um paralelo perturbador entre o “acidente” no Chile e a explosão da plataforma de petróleo Deepwater Horizon no Golfo do México, que provocou o maior vazamento de petróleo da história: ali também os operários se convenceram, bem antes dos gerentes, que as condições de segurança da plataforma eram escandalosas.

Explosão na plataforma da 'Deepwater Horizon'
Explosão na plataforma da ‘Deepwater Horizon’, a cerca de 65 km da Louisiana. Onze pessoas morreram no acidente, em 20 de abril, mas até hoje não se conseguiu estancar o derramento de petróleo (foto: Guarda Costeira dos Estados Unidos).

Abandonaram-na minutos antes da explosão que matou os onze trabalhadores que preferiram ficar, pagando com a própria vida pela fidelidade aos seus contracheques. Ao contrário dos mineiros no Chile, que agora são famosos como os ex-BBBs, os finados petroleiros ficaram no anonimato.

Ao contrário dos mineiros no Chile, os finados petroleiros ficaram no anonimato

Não fosse o longo vazamento que se seguiu, seria só mais um “acidente de trabalho”, “fatalidade” ou outro eufemismo, como as tragédias seriais em minas chinesas ou russas. As minas chinesas são consideradas as mais perigosas do mundo, e a demanda crescente por minérios não ajuda: só no ano passado mataram mais de 2.600 trabalhadores. No fechamento desta coluna, o noticiário divulgou acidentes em minas do Equador e da Colômbia.

Mas os economistas não dormem no ponto. Os últimos mineiros ainda estavam na fila para entrar na cápsula que os traria de volta à superfície quando sisudos comentaristas, alheios ao foguetório da festa, começaram a expressar preocupação em relação ao impacto do acidente sobre os custos de produção e as cotações de metais como o cobre no futuro. Reconheciam, portanto, que nada seria mais como antes: as normas de segurança se tornariam mais rígidas, e os metais, mais caros.

E você com isso? Afinal o Chile é longe e você não conhece nenhum dos 33 mineiros resgatados. Mas o nosso Instituto Nacional de Metrologia, Normalização e Qualidade Industrial (Inmetro) mostrou recentemente – e bem antes do acidente – que os fios elétricos vendidos no mercado brasileiro contêm teores de cobre abaixo da especificação legal, o que diminui sua condutividade e provoca riscos de superaquecimento, curto circuito, incêndios e outras amenidades.

Portanto, olho vivo no selo do Inmetro e nada de economizar na bitola do fio na sua próxima obra de reforma.

Mas um momento: isto é uma coluna de meio ambiente ou de defesa do consumidor? O que quero apontar é que um dos principais fatores que nos fazem destruir nosso único planeta é o lucro a curto prazo, e que só avançamos na base da tragédia, de preferência bem emocionante, lenta e midiatizada.

Prata boliviana

Por acaso e por ironia, acompanhei as peripécias dos mineiros no Chile nos parcos intervalos do colóquio internacional “Contaminação por metais: impacto sobre o ambiente, a saúde e a sociedade”, em Oruro, Bolívia, portanto pertinho do local do resgate.

Mina de prata em Potosí
Mina de prata localizada em Potosí, na Bolívia (foto: Eden and Josh/Flickr – CC BY 2.0).

O local do evento não foi casual, já que Oruro é a capital mineira de um país mineiro: um terço das receitas de exportação da Bolívia provém da exploração de produtos minerais como prata, estanho e cobre. No período colonial, a cidade de Potosí era a mais importante da região devido à sua riquíssima mina de prata, explorada até hoje.

Análises isotópicas mostraram que uma fração de praticamente qualquer artefato de prata na Europa e nas Américas provém de Potosí. Isso inclui aquela bandeja meio brega que você ganhou de presente de casamento, o que significa que você tem na cristaleira um objeto produzido por trabalho de homens, mulheres e crianças em regime de semiescravidão.

Assim como o Peru, o Chile, o Equador e o México, o altiplano boliviano é rico em depósitos minerais polimetálicos. O minério do qual se extrai ouro, prata, estanho ou cobre também contém diversos outros metais como zinco, antimônio, cobre, manganês, chumbo, mercúrio e urânio e arsênico. Muitos desses metais estão na forma de sulfetos, e os milhões de toneladas de rejeitos de mineração lançados no ambiente geram a famosa drenagem ácida, devido à formação de ácido sulfúrico por bactérias.

Alguns riachos da região têm pH próximo a 3. Assoreados por rejeitos de mineração, os córregos da região provocam inundações que inutilizam as poucas áreas aráveis de uma região semiárida já comprometida por deposição de poeiras contaminadas trazidas pelo vento. Diversas minas de ouro usam cianeto no processo de extração, e sua toxicidade aguda provoca frequentes acidentes ocupacionais.

Transbordamentos ou rupturas de bacias de rejeito – quando há bacias – matam tudo que se move por muitos quilômetros rio abaixo. O lago Popó, que tem cerca de um terço do tamanho do lago Titicaca, já está quase inteiramente colmatado por sedimentos oriundos da atividade mineira em torno de Oruro. Sua profundidade atual não passa de 2 metros e a pluma de água turva é visível do espaço: ele está prestes a se tornar uma enorme poça de lama tóxica.

Passivo ambiental

A paisagem de Oruro e seus arredores é, portanto, um imenso passivo ambiental de mineração. A própria cidade é crivada de minas, fundições e plantas processadoras. A mortalidade neonatal (até 27 dias) é de 40 por 1.000. A mortalidade infantil (até um ano) é de 50 por 1.000.

Visão panorâmica de Oruro
Visão panorâmica de Oruro, a capital mineira da Bolívia (foto: Toksave/Wikimedia Commons – CC BY 3.0).

Surpreendentemente, apenas cerca de 2% da população amostrada pela Fundação ToxBol têm níveis de chumbo no sangue superiores aos limites tidos como seguros. Apenas recentemente se iniciaram estudos integrados sobre os efeitos da contaminação sobre a saúde de adultos e crianças da região. Testes neurofisiológicos com bebês de Oruro mostraram que menores desempenhos eram associados a maiores níveis de antimônio, arsênico e/ou chumbo no sangue e/ou cabelo, e à existência de um morador da casa que trabalhe em minas.

A percepção de risco pela população local não é elevada. Sabem que há contaminação, mas já era assim quando nasceram. Ninguém cai fulminado por essa contaminação, apenas vive-se pior, provavelmente morre-se mais cedo e praticamente não há outra fonte de sustento.

Vive-se pior, morre-se mais cedo e praticamente não há outra fonte de sustento

Acabam se acostumando, como nos acostumamos com a poluição e a violência em nossas metrópoles, embora ambas nos matem, bem devagar, e sem cobertura midiática.

A mineração está intimamente associada à história da colonização portuguesa e hispânica nas Américas. A busca do Eldorado de ouro e prata moveu entradas e bandeiras, criou caminhos e cidades, modelou a paisagem e a política. A mineração é itinerante, novas minas são abertas enquanto se deixam para trás paisagens lunares de lagoas de cor suspeita entre colinas de rejeito.

Conforme as oscilações das cotações dos metais, o lixo de ontem se torna a matéria-prima de hoje, e minas abandonadas voltam à atividade. Vilas e cidades surgem do nada, e como dizia Lévi-Strauss, passam rapidamente da barbárie à decadência, sem realmente viver uma fase de civilização. Outras preferem nem se consolidar, sabedoras de que terão que se mudar, seguindo o veio dos preciosos metais.

Isso cria uma cultura da instabilidade, da mudança brusca, da migração constante, da dependência do mercado externo, da exploração e da tolerância com o risco. Isso também inibe a diversificação da economia. Situações parecidas com a que descrevi aqui salpicam no México, Chile, Peru, Equador, Colômbia, Venezuela, Suriname, Guianas e Brasil, para ficar nas Américas.

Apesar de séculos de atividade mineira, todos esses países ainda lutam com a pobreza. Onde estão os palácios, as estradas, hospitais e outras provas materiais de tanta riqueza? Algumas cidades coloniais mal cuidadas? Bosques de escala continental arrasados para alimentar os fornos das fundições? É pouco, é pouco.

E tudo isso para quê? Para que servem o ouro e a prata? Servem principalmente para fabricar adornos. Não se comem e não têm função fisiológica ou reprodutiva. Epa, reprodutiva? Tem sim: ao ostentá-los, sinalizo a todos que tenho tanto poder que posso investir energia em coisas raras, caras e inúteis. E o poder é sexy.

Jean Remy Davée Guimarães
Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro