Um dos traços essenciais da modernidade ocidental é o da instituição de uma concepção de ‘natureza’ como realidade externa ao ser humano, autônoma em relação à sua criação (divina ou não) e autorregulada de modo cognoscível e previsível.
Também foi essencial a concepção de que essa previsibilidade e o seu conhecimento permitiam um aproveitamento indefinidamente crescente de seu modo de funcionamento em proveito da melhoria das condições de vida da humanidade: a tecnologia.
Um desafio imediatamente proposto a essa concepção foi o de como lidar com a própria condição humana, pois o seu corpo (se não todas as suas dimensões) certamente pertencia à natureza e era, portanto, passível de conhecimento e intervenção propiciatória.
Os primeiros modelos modernos do funcionamento do corpo humano (na verdade de todos os animais) foram propostos dentro dessa concepção, tais como a descrição do sistema sanguíneo, ainda no século 17, e logo também do sistema nervoso. Esses modelos eram típicos do que se veio a chamar de ‘mecanicismo’, ou seja, a representação das funções vitais sob a forma de máquinas, de sistemas mecânicos.
A autorização para tal empreendimento advinha inicialmente do modelo do filósofo francês René Descartes (1596-1650), com sua dicotomia marcante entre a dimensão material humana (a res extensa) e o pensamento (a res cogitans).
Ao longo dos séculos 18 e 19, os avanços da tecnociência permitiram que a concepção mecanicista procurasse abarcar também os fenômenos do pensamento, da mente, do que se chama hoje de ‘cultura’. Atendiam assim às expectativas da filosofia iluminista, em sua versão mais materialista, e às ambições de um sistema científico cada vez mais influente, baseado na física newtoniana.
Esse movimento mereceu a contraposição de muitos pensadores ainda no século 18, sobretudo a partir do italiano Gianbattista Vico (1668-1744) e do alemão Johann G. Herder (1744-1803), suscitando uma defesa da especificidade dos fenômenos do ‘espírito humano’, de seu pensamento, de suas emoções, de sua capacidade criadora.
Mesmo no campo da incipiente medicina ocidental moderna elevou-se uma corrente de afirmação da especificidade dos fenômenos da ‘vida’, como uma dimensão própria, sui generis, do mundo observável e cognoscível – que se veio a conhecer como ‘vitalismo’ em algumas acepções; ‘organicismo’, em outras.
As ‘ciências humanas’, tal como se as vê hoje, são herdeiras de uma tensão entre as duas tendências, a iluminista e a que defendeu as qualidades emergentes, específicas, dos fenômenos da vida psicológica, cultural e social.
Já no século 20 elas abrigaram polêmicas constantes com suas congêneres ‘naturais’ ou ‘exatas’ a respeito dos esquemas interpretativos da condição humana. Em inglês, as palavras nature (natureza) e nurture (criação) representaram durante muito tempo a essência do debate sobre a determinação pela natureza ou pela cultura.
Os embates foram particularmente intensos na área das perturbações mentais ou psíquicas – divididos entre psicologias e psiquiatrias mais fisicalistas e outras mais simbólicas ou mentalistas (como a psicanálise) [ver minha coluna sobre ‘Antropologia e psicanálise’].
O papel do ambiente e a agência do sujeito
Nas últimas décadas do século passado, novas dimensões do conhecimento sobre o funcionamento humano permitiram um notável fortalecimento da interpretação naturalista, sobretudo concentrado na genética, na endocrinologia e nas neurociências.
Muitas pesquisas buscaram descrever as condições pelas quais se poderiam reconhecer as diferentes dimensões da experiência humana como decorrentes da determinação linear do código genético herdado no nascimento e das características morfológicas e funcionais imediatas das glândulas endócrinas e do cérebro.
Ao mesmo tempo, cresciam os estudos e as informações sobre o caráter não completamente determinado e determinante daquelas condições, como no caso da epigenética: transformações no funcionamento dos genes que, embora não representem alterações do DNA, podem ser transmitidas transgeracionalmente.
Essas transformações decorrem das condições da experiência vital das células ou dos organismos, ou seja, do ‘ambiente’ em que estão inseridos. Do mesmo modo, novas informações sobre o funcionamento do cérebro permitem reconhecer que sua estrutura está sujeita ao ‘ambiente’ do organismo portador, ou seja, a sua história, sua experiência vital. Pode-se falar, por exemplo, em uma ‘plasticidade do cérebro infantil’.
Essa percepção mais processual da dimensão ‘natural’ dos seres humanos é concomitante com o fortalecimento também das tendências que, nas ciências humanas, sublinham a ação, a agência, o protagonismo dos sujeitos, em detrimento de leituras mais deterministas da configuração cultural e da ordem social em que eles inevitavelmente se movem.
Novas possibilidades de debate emergem assim na fronteira entre as ciências naturais e as humanas; não mais caracterizadas por algum tipo de determinismo (ou ‘eliminativismo’ da dimensão oposta), mas por uma séria consideração da conjugada ação do fundamento natural e da ordem sociocultural na constituição do humano.
Como não há experiência humana que não se dê coletivamente, imersa em sociedades específicas e instruída pela tradição cultural que as anima, bem se vê como pode se processar cada ontogênese (ou evolução individual) contra o pano de fundo da filogênese (ou evolução da espécie).
E mesmo essa última, que algumas correntes, como a sociobiologia, consideram exclusivamente natural (e ativa ainda hoje nessa qualidade), deve ser entendida como um processo complexo de interação entre as bases materiais de uma espécie de primata e as propriedades de uma história em que se foi construindo e autonomizando a capacidade propriamente humana de comunicação simbólica, de solidariedade arbitrária e de imaginação projetiva.
Luiz Fernando Dias Duarte
Museu Nacional
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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