Da água para a terra

 

Durante o Devoniano – tempo geológico situado entre 417 e 354 milhões de anos atrás – a Terra passava por uma ampla modificação. Quase não havia organismos em terra firme. Surgiam então as primeiras florestas de plantas primitivas como o grupo das samambaias (ou pteridófitas) e representantes das licófitas e esfenófitas – todas elas plantas vasculares. Os insetos – que já se encontravam em plena conquista da terra – se diversificavam. E neste cenário surgiram os primeiros vertebrados capazes de se locomover em terra firme.
 

A imagem retrata um dos primeiros vertebrados a conquistar a terra firme. (Arte: Maurílio Oliveira. Clique na imagem para ampliar.)

O ator principal desta trama é o Ichthyostega , tido como o primeiro vertebrado a viver em terra firme. Esse animal foi estudado e reestudado por mais de cinco décadas. Quando se pensava que se sabia tudo sobre ele, um estudo publicado recentemente na Nature revela novidades sobre a maneira como ele e os primeiros vertebrados terrestres viviam e se locomoviam.

 
Pesquisadores suecos e ingleses examinaram os exemplares conhecidos de Ichthyostega , todos procedentes de depósitos da Groenlândia. Até a presente data, nenhum individuo completo foi descoberto. Porém, a superposição de elementos anatômicos dos diferentes exemplares conhecidos permite reconstituir quase todo o esqueleto, com exceção das patas dianteiras, nunca encontradas.
 
De forma geral, o Ichthyostega representa o que pode ser chamado de uma mistura de anfíbio e peixe. O crânio, a dentição e algumas partes da cauda têm muitos elementos em comum com um grupo de peixes chamado de Rhipidistia – do qual, acredita-se, foram originados os primeiros animais com quatro patas (tetrápodes). Até aqui, nada de novo, pois esta reconstrução “tradicional” já era conhecida há muito tempo. A novidade está em três aspectos principais.
 
Primeiro, os pesquisadores verificaram em um estudo anterior (publicado também na Nature , em 1990) que, ao contrário do que se supunha, o Ichthyostega possuía sete dígitos – e não cinco, como a maioria dos tetrápodes. Fica agora a pergunta de quantos dígitos teriam as mãos deste animal – e a expectativa é encontrar novos exemplares que tenham essa parte do esqueleto.
 
O segundo ponto interessante da nova reconstrução esta no direcionamento dos membros posteriores, que possivelmente seria também o caso dos membros anteriores. Como mostra a figura abaixo, a nova reconstrução posiciona os membros posteriores direcionados para a região posterior – e não de forma verticalizada em relação ao eixo principal do esqueleto, como tradicionalmente tem sido apresentado.
 

A imagem mostra a comparação de duas reconstruções do Ichthyostega . No alto, a nova, com base nas descobertas recentes; embaixo, a antiga. Entre as principais diferenças está a coluna vertebral, não tão homogênea como se supunha, e o redirecionamento dos membros posteriores.  (Reprodução: Ahlber et al. /  Nature )

A terceira – e principal – descoberta é o fato de que a coluna vertebral não era homogênea como se supunha, mas já se encontrava regionalizada. Havia claramente cinco regiões: cervical, torácica, lombar, sacral e caudal. As diferenças são observadas no tamanho do arco neural das vértebras e no seu direcionamento (que pode ser anterior, vertical ou posterior). Antigamente, supunha-se que havia uma mudança gradual do pescoço para a cauda e nenhuma diferença entre as distintas partes da coluna vertebral tinha sido detectada.

 
Talvez a diferença mais interessante na coluna vertebral do Ichthyostega esteja na região lombar/sacral/caudal – onde a inclinação dos arcos neurais das vértebras muda fortemente de anterior para posterior. Essa diferença, associada a outros aspectos, levou os pesquisadores a concluir que o Ichthyostega perdeu bastante a mobilidade lateral (comum aos peixes) e ganhou uma considerável movimentação para baixo e para cima, ou dorso-ventral.
 
Ainda de acordo com os autores do novo estudo, o Ichthyostega poderia se movimentar de duas maneiras distintas. A primeira seria andar com um movimento sincronizado dos membros, elevando o tronco, que permaneceria de forma rígida. A segunda é ainda mais inusitada: um “caminhar” com movimentos alternados de flexão e extensão vertical da região lombar – similar ao que fazem algumas lagartas hoje em dia!
 
Outro aspecto interessante da pesquisa esta nas diferenças apontadas entre o Ichthyostega e o Acanthostega – outra forma do Devoniano da Groenlândia tida como representante dos primeiros vertebrados a alcançarem a terra firme. O Acanthostega não possuía a regionalização da coluna vertebral verificada em seu “primo”, o que sugere que ambos deveriam ocupar nichos ecológicos distintos.
 

O Acanthostega  era uma forma aparentada com o Ichthyostega que ocupava provavelmente um nicho distinto. Enquanto o Ichthyostega estaria mais adaptado a se locomover em terra firme, o Acanthostega deve ter sido um animal nadador, que se valia principalmente da cauda para propulsão. (Reprodução: Ahlber et al. /  Nature )

Os dois animais eram aquáticos, mas possivelmente o Ichthyostega ficava mais tempo em terra firme. Também foi feita uma comparação com outros animais de quatro patas mais evoluídos que os dois: as análises levaram à conclusão de que o Ichthyostega ocupa uma posição de destaque dentro da evolução dos tetrápodes, mas representa possivelmente uma linhagem extinta que não logrou sucesso total na conquista da terra firme.

 
Os motivos pelos quais alguns animais deixaram os mares e corpos aquosos para ocupar a terra têm sido bastante discutidos na literatura. A idéia mais aceita foi apresentada pelo paleontólogo norte-americano Alfred Romer (1894-1973), um dos principais pesquisadores de répteis fósseis. Ele postulou que secas esporádicas existentes durante o Devoniano aprisionaram vertebrados em pequenos corpos de água. Assim, para se locomover de um corpo de água para outro, alguns “peixes” se adaptaram para utilizar as nadadeiras e se “arrastar” sobre a superfície terrestre.
 
Embora se trate de um cenário interessante, alguns pesquisadores questionaram-no particularmente pela falta de evidência concreta dessas secas durante o Devoniano e de como elas resultariam na seleção de um enorme número de características que vertebrados tiveram que desenvolver para conquistar a terra.
Pensando bem, é possível que o ambiente do Devoniano – com florestas, nenhum predador e suculentos insetos – reunisse motivos mais que suficientes para que alguns “peixes” se aventurassem na conquista terra firme. De qualquer maneira, o novo estudo sobre o Ichthyostega mostra o quanto ainda precisamos pesquisar para entender melhor como se deu esse importante passo evolutivo.  

Alexander Kellner
Museu Nacional / UFRJ
Academia Brasileira de Ciências
04/11/05

Paleocurtas
As últimas do mundo da paleontologia
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Pesquisadores dos Estados Unidos acabam de descrever uma nova espécie de Placodermi – grupo que reúne peixes primitivos caracterizados por uma extensa armadura óssea. A nova espécie pertence ao gênero Diplognathus e foi chamada D. lafargei . O animal foi encontrado em uma mina da cidade de Alpena (Michigan, EUA), onde afloram rochas do Devoniano Superior (há cerca de 360 milhões de anos). Peixes devonianos dessa região são pobremente documentados, o que aumenta o interesse pela descoberta. O trabalho acaba de ser publicado na Revista Brasileira de Paleontologia em um volume especial com trabalhos apresentados durante um simpósio internacional realizado em 2004 em Gramado.

Plesiossauros formam um grupo de répteis marinhos que viviam nos mares durante o Mesozóico. Alguns deles possuíam o pescoço muito comprido, levando os pesquisadores a acreditar que eles devem ter sido predadores ágeis que se alimentavam predominantemente de peixes. Dois novos achados realizados na Austrália contradizem essa hipótese. Os exemplares, procedentes de depósitos do Cretáceo Inferior na região de Queensland, continham parte da última ceia dos animais. E, para a surpresa geral, ela era formada sobretudo por conchas de gastrópodes e bivalves que viviam no fundo do mar. O estudo, publicado em outubro na Science , sugere que pelo menos alguns plesiossauros utilizavam seu longo pescoço para procurar seu alimento no fundo do mar e não viviam nadando atrás de peixes.

Acaba de ser realizada a 65 a Reunião Anual da Sociedade da Paleontologia de Vertebrados (SVP) em Mesa (Arizona, EUA). Na reunião, que aconteceu entre 19 e 22 de outubro, foram apresentadas as principais pesquisas sobre vertebrados fósseis no mundo. Neste ano, estiveram presentes mais de mil participantes. A próxima reunião da SVP será realizada em Ottawa, no Canadá, entre 18 a 21 de outubro de 2006.

Um encontro reunindo pesquisadores que trabalham com vertebrados do Cretáceo nos Estados Unidos esta sendo organizado pelo Museu de História Natural e Ciência do Novo México, em Albuquerque (EUA). O simpósio será realizado entre 22 e 24 de maio de 2006. Mais informações podem ser obtidas com Robert Sullivan ( [email protected] ).

Acaba de ser publicada na Nature a descoberta do mais antigo dromeossaurídeo (dinossauros proximamente relacionados às aves) da América do Sul. Chamado de Buitreraptor gonzalezorum , o novo dinossauro carnívoro foi encontrado na Formação Candeleros (com rochas de 95-90 milhões de anos) da província de Río Negro, noroeste da Patagônia. O animal se diferencia dos demais dinossauros terópodes por ter dentes pequenos desprovidos de serrilhas e um crânio bastante longo. Este novo achado corrobora a hipótese segundo a qual as faunas de dinossauros dos supercontinentes Laurásia (no norte) e Gondwana (no sul) se desenvolveram de forma independente durante o Cretáceo.

Recentemente o Museu Americano de História Natural de Nova York inaugurou a exposição Dinossauros: antigos fósseis, novas descobertas . A mostra revela como a tecnologia tem ajudado os paleontólogos a entender melhor os fósseis, alguns deles conhecidos há muito tempo. Um exemplo são as novas teorias sobre a locomoção do T. rex com base em modelos desenvolvidos com ajuda de computadores e as funções de cristas em dinossauros com ajuda da tomografia. A exposição tem ainda uma espetacular reconstrução do que era a região de Liaoning (China) há 125 milhões de anos. A mostra será levada ainda para outras cidades nos EUA.

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