Darwin e Popper: enganos, retratação, reconciliação

 
 

Famosa foto de Charles Darwin em 1881, aos 72 anos. Segundo o relato de Karl Popper em sua aula inaugural no Colégio Darwin da Universidade de Cambridge em 1977, essa foto decorava o escritório de seu pai em Viena e foi seu primeiro contato com Darwin. Popper achava que a foto revelava um Darwin simpático e quieto, mas também um pouco triste e solitário.

Na coluna de janeiro o foco foi Charles Darwin, super-herói científico. Ao discutir sua teoria evolucionária, citei o capítulo 4 da Origem das espécies , no qual ele define seleção natural. Pois bem, tenho de confessar um pecadilho de omissão: minha citação estava incompleta. Deveria ter sido assim: “A essa preservação de diferenças e variações, e eliminação daquelas que são injuriosas, chamei Seleção Natural ou Sobrevivência dos mais Aptos ” (em inglês, Survival of the Fittest ). Por que omiti propositadamente essa partezinha final (em itálico)?

Bem, em primeiro lugar, a expressão “sobrevivência dos mais aptos” não é de Darwin, tendo sido cunhada em 1857, dois anos antes da publicação da Origem das espécies , pelo filósofo e teorista político Herbert Spencer (1820-1903). Spencer foi responsável pela criação do que mais tarde veio a ser chamado de “darwinismo social”. Esse movimento – que tinha muito pouco a ver com Darwin e não foi endossado por ele – tratava sociedades humanas como sistemas que evoluem por competição entre indivíduos, grupos e nações.

Um dos seus maiores proponentes foi o biólogo alemão Ernst Haeckel (1834-1919), que acabou fornecendo a base “científica” para o infame movimento nazista. Por isso, a expressão “sobrevivência dos mais aptos” tornou-se meio maldita. Aliás, vale a pena mencionar que Darwin usou-a na Origem das espécies só por insistência de seu colega evolucionista Alfred Wallace (1823-1913), que temia que o termo “seleção natural” levasse alguém a postular a necessidade de alguma divindade para fazer a seleção. As carreiras e os pensamentos de Haeckel e Wallace serão apresentados com mais detalhe em colunas futuras.

O segundo motivo para a minha omissão foi que o enunciado da seleção natural em termos de “sobrevivência dos mais aptos” traz consigo um quebra-cabeça: como definir quem é o mais apto? A resposta dada pelos geneticistas quantitativos da primeira metade do século 20 foi: através da própria sobrevivência (aqui entendida como sobrevivência evolucionária, ou seja, a capacidade de se reproduzir e transmitir genes a gerações subseqüentes). Só que “sobrevivência dos mais aptos” torna-se então “sobrevivência de quem sobrevive”, um argumento circular, uma tautologia.

A polêmica de Popper
Esse problema foi percebido por vários pensadores, inclusive pelo austríaco Karl Popper (1902-1994), o mais famoso e influente filósofo da ciência no século 20, que escreveu: “Cheguei à conclusão de que o darwinismo não é uma teoria científica testável, mas sim um programa metafísico de pesquisa”. Dizem alguns filósofos que a intenção de Popper com essa afirmativa não era ofender ninguém. A verdade é que, alguns anos mais tarde, em sua aula inaugural no Colégio Darwin da Universidade de Cambridge (clique aqui para acesso ao conteúdo), ele disse: “Mudei de idéia a respeito da testabilidade e status lógico da teoria da seleção natural e estou contente de ter a oportunidade de fazer uma retratação”.

Sir Karl Popper (1902-1994), um dos mais influentes filósofos da ciência no século 20. Ele é famoso por ter rejeitado o método indutivo e por ter estabelecido a falsificabilidade como critério demarcativo para distinguir ciência da não-ciência. Popper é conhecido também pela sua vigorosa defesa filosófica da democracia liberal. Ele inicialmente rejeitou a seleção natural como princípio científico, mas se retratou publicamente mais tarde.

O que levou Popper a se retratar em 1977? Naquela altura do campeonato já havia a clara percepção do erro de definir “o mais apto” apenas como “o que sobrevive”. O que acontece é que, em cálculos de genética quantitativa, a “aptidão” é sempre medida pelo número de descendentes. Mas é um erro sério confundir o significado de um termo com a maneira de medi-lo.

 

Vejamos uma analogia: postula-se a existência de uma qualidade humana chamada “inteligência”, medida quantitativamente pelo teste de QI. Mas há muito mais dimensões no termo “inteligência” do que um teste de QI se propõe a quantificar, tais como a capacidade de apreender e organizar dados, capacidade de resolver problemas e empenhar-se em processos de pensamento abstrato etc.

 

Da mesma maneira, há muito mais envolvido em ser o mais apto do que simplesmente a sobrevivência evolucionária (veja aqui um belo artigo de Stephen Jay Gould sobre esse assunto). Popper inicialmente aceitou a caracterização quantitativa de alguns geneticistas como se fosse uma definição e embarcou em uma canoa furada!

 

Façamos um pequeno parêntese para relembrar um ponto fundamental. A evolução por seleção natural depende de dois processos distintos: a geração aleatória de diversidade (“o acaso”) e a persistência evolucionária dos indivíduos mais adaptados (“a necessidade”). Como colocou brilhantemente meu guru Stephen Jay Gould, “a variabilidade propõe, a seleção natural dispõe”.

 

Um segundo engano de Popper?

 

Pois bem, no capítulo 15 do seu famoso livro Conjectures and refutations: the growth of scientific knowledge , Popper escreveu (minha tradução): “O método através do qual se procura uma solução é geralmente o mesmo; é o método da tentativa e erro

. Este, fundamentalmente, também é o método usado por organismos vivos no processo de adaptação”. Em minha opinião, Popper cometeu aqui um segundo engano evolucionário.

 

Pelo já exposto acima podemos ver que a evolução por seleção natural não ocorre por tentativa e erro e sim por erro e tentativa

! Afinal, a geração de variabilidade por mutações (“o erro”) vem primeiro, sendo então seguido pela seleção natural (“a tentativa”). Pode parecer que estou fazendo joguinho de palavras e discutindo quantos anjos dançam na ponta de um alfinete, mas a verdade é que a diferença é grande. Vejamos alguns exemplos.

 

Linus Pauling, o mais ilustre químico do século 20. Ele estabeleceu as bases quânticas das ligações químicas (pelo que ganhou o Nobel de Química em 1954). Além disso, descobriu as duas estruturas secundárias principais das proteínas (alfa-hélice e estrutura beta-pregueada) e mostrou que a anemia falciforme era uma doença molecular causada por uma troca de aminoácidos na hemoglobina. Em 1953 Pauling perdeu por pouco a corrida para desvendar a estrutura molecular do DNA. Em 1962 ganhou um segundo Nobel, desta vez da Paz, por seu ativismo contra a proliferação nuclear.

Perante um problema científico, nós, meros mortais, tentamos ter uma boa idéia que nos leve a uma solução. Este constitui o método ortodoxo de tentativa e erro – exatamente o que Popper estava discutindo. Por outro lado, quando perguntaram ao genial químico americano Linus Pauling (1901-1994) como ele tinha tantas boas idéias, ele respondeu: “A maneira de ter boas idéias é primeiro ter um montão de idéias e depois jogar fora as ruins”. Vejam que a estratégia de Pauling é baseada em duas etapas: (1) criação de diversidade (“tenha um montão de idéias”) e (2) seleção (“jogue fora as idéias ruins”). Em outras palavras, esta é uma tática darwiniana!

 

O estratagema “Pauling-Darwin” para conseguir boas idéias é generalizável e tem importantes conseqüências práticas. Examinemos como um segundo exemplo hipotético o processo de entrada de alunos na universidade. O procedimento convencional é fazer um exame vestibular e escolher os alunos com melhores notas para admissão. Após o ingresso, a promoção dentro da universidade é fácil, pois o nível de exigência dos cursos é relativamente pequeno. A estratégia darwiniana envolveria admitir um número muito maior de alunos (admitir todos os candidatos ou fazer um vestibular que eliminasse apenas os completamente despreparados) e estabelecer critérios muito rígidos para avanço de um período a outro dentro da universidade.

 

Popper e Darwin reconciliados

 

O Livro do Apocalipse da Bíblia

fala dos Quatro Cavaleiros: morte, guerra, fome e pestilência. Com os conflitos na Irlanda do Norte, no País Basco, em Ruanda e nos Bálcãs no final do século passado e, após o 11 de setembro, a invasão do Afeganistão e do Iraque no início do século 21, acredito que vamos ter de adicionar pelo menos quatro novos cavaleiros à tropa do Apocalipse: racismo, xenofobia, ódio étnico e intolerância religiosa. Para combater esses novos inimigos da humanidade, precisamos promover na sociedade a valorização da diversidade em todos os seus níveis: nas idéias, nos estilos de vida, na morfologia física, na cor de pele, na orientação sexual, na religião etc.

 

Foi exatamente isto que propôs Popper em seu livro Sociedade aberta e seus inimigos, uma bem-sucedida incursão na arena da filosofia política. Para Popper, a sociedade aberta é aquela na qual os líderes podem ser depostos sem necessidade de derramamento de sangue, em contraste, por exemplo, com ditaduras totalitárias, em que é necessária uma revolução ou um golpe para se conseguir mudança.

 

O conceito de sociedade aberta de Popper deriva de sua filosofia da ciência. Uma sociedade aberta tem de ser pluralista e multicultural para se beneficiar do número máximo de diferentes pontos de vista para solução dos problemas. E como ninguém tem conhecimento do que constitui um governo perfeito, a melhor maneira é os governantes estarem prontos a mudar suas políticas, adaptando-as de acordo com as necessidades e com as sugestões da população.

 

Vemos aqui os nossos dois elementos: diversidade e adaptação. Reflexos de Darwin? Certamente! A meu ver, esse modelo da sociedade aberta de Popper – e não a teoria competitiva, elitista e racista de Spencer, Haeckel e Hitler – deve ser entendido como o verdadeiro darwinismo social.

 

Para terminar esta coluna, transcrevo aqui uma passagem notável de Clarice Lispector sobre o potencial criativo do erro (do livro A paixão segundo G.H.), que me foi enviada pelo amigo e colega do Instituto de Estudos Avançados Transdisciplinares da UFMG, Carlos Antônio Brandão:

 

“E não me esquecer, ao começar o trabalho, de me preparar para errar. Não esquecer que o erro muitas vezes havia se tornado o meu caminho. Todas as vezes em que não dava certo o que eu pensava ou sentia – é que se fazia enfim uma brecha, e, se antes eu tivesse tido coragem já teria entrado por ela. Mas eu sempre tivera medo de delírio e erro. Meu erro, no entanto devia ser o caminho de uma verdade: pois só quando erro é que saio do que conheço e do que entendo. Se a ’verdade‘ fosse aquilo que posso entender – terminaria sendo apenas uma verdade pequena, do meu tamanho. A verdade tem que estar exatamente no que não poderei jamais compreender.”

 

Sergio Danilo Pena
Professor Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia
Universidade Federal de Minas Gerais
09/02/2007